"Ninguém, ao ser tentado, diga: Sou tentado por Deus; porque Deus não pode ser tentado pelo mal e ele mesmo a ninguém tenta. Ao contrário, cada um é tentado pela sua própria cobiça, quando esta o atrai e seduz". Tg. 1:13-14
O diálogo do gênesis entre Deus, Adão, Eva e a serpente é algo extraordinário. Ele carrega em si mesmo muitos significados e revela-nos facetas do caráter e do comportamento dos mortais. Poderia ser, para os estudiosos da alma humana, para os que buscam através de ações terapêuticas amenizar as dores do ser, um vasto cabedal de conhecimentos. Mas, via de regra, os Escritos Sagrados têm sido desprezados, sobretudo pela dificuldade que possuímos de interpretar alguns de seus conteúdos. Neste caso, por exemplo, temos um texto em linguagem mítica, com seus simbolismos próprios que, erroneamente imaginamos, deva ser entendido de forma literal.
Quando paro para analisar os contornos do capítulo 3 de Gênesis, acabo encontrando uma coisa muito comum e presente nos relacionamentos humanos, a famosa “transferência de responsabilidade”. No fundo, para mim, a “conversa” parece apenas um grande jogo de empurra, uma espécie de "salve-se quem puder"! Senão, vejamos...
Na viração do dia, Deus, sentindo cheiro de lambança, procurou o homem para lhe perguntar o que estava havendo. Adão, meio “cabrero”, respondeu o seguinte: "a mulher que você me deu por esposa me ofereceu do fruto da árvore e eu comi". Ou seja, “olha patrão, a culpa é Tua! Essa aí já veio com defeito de fabricação. Não dá pra fazer outra não?”. Mas Deus é Deus, misericordioso e paciente. Mandou chamar a "marvada" da Eva e perguntou: "o que foi que você fez?". Olha só a resposta da "criança": "...a serpente me enganou, e eu comi". Fico imaginando que se o Senhor desse "corda ao assunto", chegando ao desplante de inquirir, também, a serpente, é bem provável que ela se saísse com algo do tipo: "ora, a culpa é Tua! Não foi você mesmo que criou estas duas alminhas sebosas?". É pouco, ou quer mais?
Como pastor, tenho sido sempre questionado pelas pessoas sobre a origem de muitos dos dramas humanos. Deparo-me, não raras vezes, com questões complexas, do tipo: "pastor, por que isto aconteceu comigo? Será que é uma armadilha de satanás para minha vida?”. Outros afirmam: “Ah, isso não é culpa minha não, é fruto da minha criação. O problema é da minha mulher, ela é que não me entende”. Ouço coisas do tipo: “Ah meu querido, o tráfego estava um horror, por isso me atrasei; pastor, o vestibular foi muito difícil, não dava mesmo para passar; reverendo, mesmo me esforçando, continuo desempregado. O mercado de trabalho está terrível para alguém da minha idade".
Sinceramente, não sou cigano, nem vidente, mas apenas profeta, por isso não tenho, muitas vezes, respostas exatas nem convincentes para o porquê de tais questões. Um pastor amigo, professor de Teologia, disse-me certa vez que, em muitas situações no ministério, a única coisa a se fazer é apenas sentar junto e ficar calado. Por isso, meu brother, deixe-me quietinho aqui, não provoque não! Aí vem você e me pergunta: “de quem é a culpa então?”. Quer mesmo uma explicação? Então vou tentar esclarecer alguns pontos para você.
Questões de Constituição do Ser
Do ponto de vista da psicologia, elementos que redundam em transferência de responsabilidade são chamados de “projeção” e estão enquadrados em um grupo do comportamento humano chamado de "mecanismos de defesa".
Segundo Eugênio Mussak, colunista da revista Você SA e especialista em educação corporativa, estes mecanismos se manifestam da seguinte forma: "a parte da estrutura psicológica chamada ego muitas vezes recusa-se a reconhecer impulsos de seu vizinho, o id. Essa é a parte da mente humana mais primitiva, regida pelo impulso do prazer, e que busca a satisfação imediata das necessidades e o apaziguamento das tensões. Obedecendo a esses impulsos primitivos, muitas vezes fazemos coisas, ou deixamos de fazer, que nossa própria moral reprovaria. É quando entra o ego, que é regido pelo princípio da realidade. Quando adultos, não podemos mais simplesmente cair no choro e sapatear quando somos contrariados ou repreendidos. As crianças fazem isso porque são comandadas pelo id. Nos adultos, o ego assume o comando e a responsabilidade. Entretanto, às vezes o golpe é muito forte para um ego ainda não totalmente estruturado. Nesse caso, ele projeta a culpa para fora de si, isentando-se e, claro, incriminando alguém”. Resumindo, Freud explicou, pelo menos em parte...
Questões Relativas aos Desdobramentos Existenciais
Outra coisa importante, e que não pode ser desprezada, é que em todo fato desencadeado na natureza, existe a causa que o determina e a causa que o predispõe. Sempre existe uma causa interna e outra externa para cada um dos fenômenos da vida humana. Por exemplo, um casal, depois de anos experimentando um relacionamento apático, sem diálogo, carinho ou cumplicidade, em uma discussão banal, por causa de um programa de TV, decide se separar. O que determinou a separação foi a controvérsia, não há dúvidas, mas o que permitiu que algo tão drástico acontecesse foram os anos de total entorpecimento do amor. Isso sim foi o que provocou a desconstrução da relação.
Para que um ser seja emocionalmente saudável, é necessário que haja a experimentação do equilíbrio entre estas duas questões, a causa determinante e a causa de predisposição. O problema é que, na grande maioria dos casos, as pessoas não conseguem ajustar o "fiel da balança" para que isto se constitua num determinante existencial. Valorizam sempre um aspecto mais do que o outro, de acordo com suas próprias conveniências. Desta forma, acertos acabam sendo sempre mérito nosso, mas desgraças, via de regra, são produzidas por fatores externos a nós, algo ou alguém.
É muito raro uma pessoa me dizer: "pastor, isso é culpa minha, de minhas escolhas e ações, e não tem nada a ver com o diabo. Pastor, meu casamento acabou porque nunca tratei minha mulher como deveria", ou, "não passei no vestibular porque não estudei", ou ainda, "não consigo emprego porque meu currículo é fraco”. Se fosse assim seria uma maravilha...
Mas não é.
Questões de Suposta Natureza Espiritual
É muito comum, sobretudo no meio cristão, a atribuição a satanás de poderes extraordinários. Nós "crentes" gostamos de meter o diabo em tudo. Ele é o arquiteto das desgraças humanas. Sentado na sua prancheta no inferno, vive a elaborar planos malignos para nos destruir.
Esse tipo de pensar está associado a uma fé infantil, a uma espiritualidade baseada no medo, demonizada pelas “teologias da terra”. Infelizmente, creio que a igreja tem muito a ver com tudo isto. É que o diabo na igreja é tratado como um super-star, com status de ator hollywoodiano. Tudo de ruim que acontece é coisa do diabo, como se nós nunca tivéssemos qualquer responsabilidade sobre o "latifúndio". Não seria heresia achar, inclusive, que o "capiroto" se sinta profundamente injustiçado e ofendido com tudo isso. Não me surpreenderia se ele procurasse a Deus e dissesse: "olha aqui, aquela “parada” lá não é culpa minha não, viu. Vê o que aquele miziguento tá fazendo, Senhor!". E Deus olhando para o proceder de Seu filho na Terra, responderia: “Durma com um barulho desse...”.
Sinceramente, o que vejo em Jesus me serve como chave hermenêutica para estas questões. O Senhor nunca deu qualquer importância a satanás, nem muito menos fez qualquer apologia a teologias sobre encostos, maldições hereditárias, e outras maluquices que a igreja inventou. Quando encontrou, no caminhar da existência, pessoas possessas, expulsou o demônio sem muitas delongas nem pirotecnias. "Retira-te dele", era o que bastava. Bem diferente do que acontece em nossos dias, nestes espetáculos bizarros de exorcismo fraudulento de demônios de quinta categoria, os quais, supostamente, estão atormentando a vida das pessoas. Sai capeta! Quanta gente vivendo de correntes e sessões de descarrego as quais, ao invés de quebrar o jugo do diabo, quebra apenas a cara do “cliente” e, não raras vezes, o bolso também.
Não me entenda mal. Eu não estou afirmando que satanás, por vezes, não crie cenários existenciais para nos atormentar com culpas e medos. Como já disse, a “serpente” se alimenta do pó da terra, ou seja, de toda a produção emocional e psíquica dos humanos caídos. Isso, sem dúvida, é um poderoso motor de propulsão quando acionado. Por exemplo, medo gera medo que alimenta o medo para desenvolver mais medo ainda. É um ciclo vicioso. Mas é fato que o diabo não pode atuar na "peça", ainda que ajude a ornamentar o cenário. Quem desempenha o papel de ator principal do espetáculo somos nós, sempre a partir de nossas próprias escolhas e decisões. Jean Paul Sartre, filósofo existencialista, disse certa vez que "o inferno é o outro". De fato, para muitos, é justamente isso que se processa no ser: criam infernos particulares onde todo mundo tem culpa no cartório, menos eles mesmos. É um eterno jogo de transferência, um empurra-empurra, um “toma que o filho é teu”. Muito elementar...
A Posição das Escrituras Sagradas
Tiago, no texto que citei acima, que para mim é bastante equilibrado e isento, pois coloca cada coisa em seu devido lugar, afirma que Deus não tenta ninguém. A respeito do diabo, como era de se esperar, não fala absolutamente nada, deixando o “tinhoso” no seu devido lugar, apenas como espectador da existência. Contudo, de forma categórica, pontua que nossos desencontros são fruto das escolhas que fazemos, de nossa cobiça e contradições, ou seja, em última instância, a responsabilidade é toda nossa.
De fato, cada um de nós busca viver por uma espécie de “mapa existencial”, e determina, a partir dele, quais rotas deverão ser seguidas. Na fase de execução do projeto, somos chamados a tomar decisões, muitas das quais acabam por modificar o mundo ao nosso redor, tanto a nosso favor, quanto contra nós, e nem Deus, nem o diabo, tem nada a ver com isso. Somos responsáveis por cada decisão que tomamos. Não adianta tentar fazer transferências ou viver de escapismos, isso não nos ajuda em absolutamente nada, apenas provoca um sentir infantil, que desemboca numa psique instável, e leva-nos a experimentar sentimentos de frustração, impotência e injustiça. Tornamo-nos vítimas do mundo, e nunca de nós mesmos...
A vida cristã é construída a partir de valores e verdades. Deus estabeleceu princípios imutáveis através dos quais opera. Por exemplo, “aquilo que o homem semear, isto também ceifará”. É o livre arbítrio em operação. Não dá para plantar vento e depois não querer colher tempestade. De forma prática, se não estudar, não passa; se não amar a esposa, o casamento se dessignifica; se não aprender a repartir, vai tornar-se avaro; se não perdoar, terá o ser consumido pela amargura; se não falar a verdade, viverá enredado com mentiras, se não tiver controle, vai se endividar, e por aí vai...
Conclusão
Quero desafiá-lo a aprender a fazer uma dicotomia dos fatos e fenômenos que lhe acometem. Tente discernir o que é de natureza psicológica, o que veio como conseqüência e desdobramento existencial e, se for o caso, o que surgiu a partir de aspectos e implicações espirituais. A vida é feita de escolhas e cada um de nós fará o seu próprio caminho sobre a terra, seja com Deus, seja sozinho. Se queremos crescer, em todos os aspectos, precisamos colocar cada coisa no seu devido lugar.
Em última hipótese, todavia, considere que algumas situações que lhe advirão estarão fora de seu controle e responsabilidade, e podem apenas ser o desenrolar de fatores externos que, involuntariamente, acabaram “caindo” sobre você. Nestes casos, tire proveito do todo e aprenda, também, a lidar com isso, pois está escrito que "todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus".
Entretanto, não posso deixar de afirmar, é bem provável que na absoluta e esmagadora maioria das vezes, nem Deus, nem o diabo, nem os outros possuam qualquer responsabilidade sobre suas desventuras. Introjetar esse saber no ser lhe proporcionará um enorme bem na vida e lhe trará paz e serenidade.
A história mítica do Édem, dentre outras coisas, nos ensinou que o pecado passou a todos os homens em função da escolha de um só. Entretanto, segundo Paulo aos Romanos, “onde abundou o pecado, superabundou à graça!”. É que Deus, em Cristo Jesus, antes de haver mundo, ou mesmo humanos habitando nele, antes, inclusive, de haver luz na Terra, disse: "haja cruz!". O Cordeiro foi sacrificado antes de todos os começos, pois, para o Pai, o fim precedeu ao princípio, e isso assim foi feito para que existisse uma alternativa segura e viável de salvação para mim e para você. Essa escolha foi ele quem fez! Façamos, então, a nossa! Antes de escolher, todavia, não esqueçamos de que, por ela, viveremos ou morreremos.
Sola Gratia !
Carlos Moreira
Adoração em tempo integral
Há 2 dias
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