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09 novembro 2010

Quando Nordestinos se Transformam em Samaritanos

No dicionário Michaelis, xenofobia é: aversão às pessoas e coisas estrangeiras. Falar de xenofobia é falar de discriminação, de juízo temerário, de sentimentos como prepotência, orgulho e superioridade racial, política, religiosa, sexual, intelectual ou cultural. Me daria mais prazer, citando Rousseau, escrever sobre a minha preferência em ser “...um homem de paradoxos que um homem de preconceitos”. Mas, a esta altura do campeonato, eu já aprendi que a vida é bela, e o mundo é mau...  

Eu não sei quantos de vocês acompanhou o último “boom” do
 microblog Twitter que aconteceu no domingo dia 31 de outubro com mensagens ofensivas aos habitantes do Nordeste do Brasil. Os escárnios começaram por conta de se atribuir a vitória de Dilma Rousseff aos votos dos nordestinos. Ledo engano. Apesar de não ter votado nela, constato que a futura presidente ganharia mesmo não sendo computados os votos do Norte e do Nordeste. 


O caso mais extremo, entretanto, me pareceu ser o da estudante de direito Mayara Petruso, de São Paulo, que escreveu em seu
 blog: “Nordestino não é gente. Faça um favor a SP, mate um nordestino afogado!”. Como era de se esperar, imediatamente explodiu na net todo tipo de manifestação, tanto em defesa como contra o post. Ao final, o episódio apenas reacende o velho conflito regional que marca a cena sócio-histórica-cultural brasileira há décadas. Nada de novo...


Do ponto de vista do direito e da legalidade, e é bom que se diga, diversos segmentos estão fazendo protestos e entrando com representações no Ministério Público de Pernambuco e de outros Estados contra o triste episódio. Segundo o presidente da OAB-PE, Henrique Mariano, Mayara deve responder por crime de racismo (pena de dois a cinco anos de prisão, mais multa) e incitação pública de prática de crime (cuja pena é detenção de três a seis meses).
 No Brasil, a Lei nº 1.390, de 3 de julho de 1951 trata da questão do preconceito e da discriminação racial e a Lei nº 7.716, de 15 de janeiro de 1989, a qual foi modificada pela Lei nº 9.459, de 13 de maio de 1997, alarga significativamente as questões interpretativas, apontando expressamente a discriminação e acrescendo os crimes resultantes de preconceito ou discriminação de etnia, religião ou procedência nacional.



Mayara, que provavelmente acompanhava o que estava acontecendo e, sabedora de que na internet tudo ganha “volume” e “intensidade” de forma assombrosamente rápida, ainda na madrugada da segunda-feira apagou os posts que continham essas informações e, logo em seguida, tornou seu perfil “privado” para que ninguém mais pudesse ver absolutamente nada em seu blog. Impossível me foi não lembrar de Einstein: “triste época essa que vivemos! É mais fácil desintegrar um átomo do que quebrar um preconceito”.

Diante do exposto, trago algo semelhante nas Escrituras; "Um homem descia de Jerusalém para Jericó, quando caiu nas mãos de assaltantes. Estes lhe tiraram as roupas, espancaram-no e se foram, deixando-o quase morto. Aconteceu estar descendo pela mesma estrada um sacerdote. Quando viu o homem, passou pelo outro lado. E assim também um levita; quando chegou ao lugar e o viu, passou pelo outro lado. Mas um samaritano, estando de viagem, chegou onde se encontrava o homem e, quando o viu, teve piedade dele. Aproximou-se, enfaixou-lhe as feridas, derramando nelas vinho e óleo. Depois colocou-o sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e cuidou dele. No dia seguinte, deu dois denários ao hospedeiro e disse-lhe: ‘Cuide dele. Quando voltar lhe pagarei todas as despesas que você tiver’. "Qual destes três você acha que foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes? " "Aquele que teve misericórdia dele", respondeu o perito na lei. Jesus lhe disse: "Vá e faça o mesmo". Lc. 10:29-37.

Os Samaritanos eram um povo que, depois do cisma entre as 12 tribos, acabaram constituindo o Reino do Norte – Israel, cuja capital, por volta do século IX a.C. era Samaria. As disputas entre o Reino do Sul – Jerusalém e o Reino do Norte – Samaria – se estabeleceram por centenas de anos, chegando ao ponto dos hebreus mais ortodoxos não considerarem os Samaritanos judeus, nem mesmo filhos de Israel, mas sim descendentes de estrangeiros. Assim, nos tempos do Galileu, os Samaritanos eram um povo isolado, distanciado de Jerusalém, das práticas da religião judaica, que havia criado seu próprio código sagrado, seus preceitos e seu templo. 

Todas estas questões históricas, religiosas e culturais havia os tornado execráveis e, por conta disto, eles eram odiados pelos seus próprios compatriotas. Por isso, não raras vezes, vemos Jesus quebrando, como de costume, paradigmas existentes usando os Samaritanos como modelo de espiritualidade. O fato é que Jesus era contra todo preconceito, toda acepção de pessoa, todo julgamento presunçoso, toda discriminação, toda separação. E Ele sabia onde “pisava”, pois ali estava uma nação separada por “confrarias” religiosas, num mundo dividido em castas – ou seria melhor dizer carmas. Mas Sua mensagem sempre foi em favor das minorias, dos excluídos, dos caídos, dos esquecidos, dos sofridos, dos ardidos, dos deprimidos, dos expurgados, dos enxotados, dos que nada tinham.

Trouxe a passagem apenas para refrescar nossa mente cauterizada e viciada em interpretações de prateleira, em exegeses enlatadas. Sim, porque nela Jesus estabelece como modelo de espiritualidade um homem da escória em detrimento da elite espiritual, dos que possuíam pedigree, dos descendentes de Abraão, dos politicamente corretos, dos “teologicamente reformados”, dos “gospels”, dos “apóstolos”, “bispos” e “levitas da música”. Todos estes passaram ao largo e deixaram o moribundo entregue a própria sorte. Todos iam pelo mesmo caminho, mas apenas um deles caminhava de forma diferente. E sempre é assim, pois o caminho é um só, mas a maneira como se caminha é que faz toda a diferença. Uma coisa é conhecer o caminho, outra é caminhar por ele.  

Deus está atrás de gente, não de crente, está em busca de adoradores, não de cantores ou pregadores, está desejoso de encontrar corações quebrantados, não egos super-inflados. Quero lhe perguntar: Como se sentiria um travesti sentado no banco de sua “igreja”? Como se sentiria um casal de lésbicas assistindo a escola dominical em sua denominação? Como se sentiria uma garota de programa no culto da juventude de sua comunidade? Eles seriam aceitos? Eles seriam tratados com respeito? Eles teriam a oportunidade de ir e vir como os adúlteros, os sonegadores de impostos, os fofoqueiros e os avarentos?

Estamos mesmo prontos para receber os “perdidos” da Terra? Nossos encontros são acolhedores? Nossas “igrejas” estão com suas portas abertas para o diferente? Nossas casas podem receber gente que não se parece com a gente? O mundo quer respostas e nós dizemos que Jesus é a solução, mas nós não sabemos o que eles perguntam, por isso nossas respostas nada dizem, são retórica verborrágica sacralizada, e não amor encarnado no chão da vida. 

Foi vergonhoso este episódio!  Fiquei triste de ver os meus conterrâneos Nordestinos tratados de forma xenofóbica como também um dia foram tratados os Samaritanos. Foi deplorável a posição de Mayara, ainda que eu ache que ela, no caminhar da existência, deva merecer a chance de se reposicionar e se arrepender. É triste ver que existe dentro de nosso país tanta segregação, tanto preconceito, tanta acepção, tanta anestesia de alma, tanta indulgência com a injustiça, tanta cumplicidade com a inverdade, tanta flexibilidade com a contradição, tanta hipocrisia, tanto desamor. O preconceito, no Brasil, é silencioso, disfarçado, travestido, hipócrita, dissimulado. Não é escancarado como em outras partes do mundo. Aqui ele é sutil, quase intelectual, por vezes recoberto de pensamentos político-filosóficos. Mas ele existe e está aí. É o preconceito contra os Negros, contra os Deficientes, contra os Toxicômanos, contra os ex-Presidiários, contra os Homossexuais, contra os Nordestinos, contra as Garotas de Programa...

Fiz questão de escrever todos estes grupos humanos com letra maiúscula porque é justamente assim que os vejo. Como gente maiúscula! Alguns fizeram escolhas e devem ser respeitados em suas opções. Eu, por outro lado, devo pregar sobre o amor, a graça, a misericórdia e o desejo de Deus de que, em Cristo, todo ser humano encontre o padrão para ser e existir. Mas isto tem de ser feito com amor, pois, sem ele, o que sobraria da mensagem do Evangelho? Por isso, por vezes penso se não é verdade a afirmação de William Haslitt quando diz: Quase toda a seita do cristianismo representa uma perversão da sua essência, com a finalidade de adaptá-lo aos preconceitos do mundo”. Você tem coragem de refletir sobre isto?...

Carlos Moreira

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