Já fazia muito tempo que, entre os bichos da floresta, os ministros religiosos eram escolhidos entre as corujas. As razões que explicam esta preferência eram as mais diversas, citemos algumas: a) As corujas possuíam carinho tal pelos seus, que achavam seus filhos lindos ainda que toda a floresta os visse como criaturas abomináveis. b) há muito tempo, por passar inúmeras noites acordadas, dedicando-se ao estudo, ficaram famosas e foram consideradas símbolos da sabedoria. c) O fato de serem aves e viverem em lugares altos dava-lhes uma melhor visão das coisas que aconteciam lá em baixo. d) Seu aspecto taciturno fazia com que os outros lhe atribuíssem uma grande capacidade de reflexão.
Enfim, entre os animais, as corujas pareciam ser, sem sombra de dúvidas, os mais aptos para o sacerdócio, e a sua escolha pelos outros bichos demonstrava que na floresta o critério utilizado para eleger o guru espiritual era bastante rigoroso e levava em conta vários aspectos da vida do escolhido e não apenas alguns, afinal de contas à atividade religiosa mostra sempre que o líder espiritual tem que ser um pouco de tudo.
O tempo passou e as coisas mudaram. Certos paradigmas foram quebrados e muitas revoluções tiveram início. No campo ético, por exemplo, a figura do sacerdote já não era mais associada à honra e ao respeito, pelo contrário, o mercantilismo da fé fazia com que muitos bichos olhassem para as corujas como grandes espertalhonas que não queriam trabalhar e sim ter vida fácil, o que, em alguns casos, era verdade. Por outro lado, muitas corujas tinham dado motivos suficientes para essa desconfiança tendo agido imprudentemente com relação ao dinheiro e ao sexo. Diante de tudo isso os bichos começaram a questionar a aptidão das corujas para o sacerdócio e, depois de muita briga, foi eleito para o ministério religioso o primeiro animal que não era daquela espécie: uma toupeira.
Uma toupeira? Admiravam-se os mais experientes, uma vez que as toupeiras possuíam, entre os animais, a fama de serem bichos desprovidos de inteligência e que sabiam apenas cavar buracos.
A escolha das toupeiras, porém, tinha lá seus motivos, afinal de contas, já dizia um antigo filósofo: “todo efeito tem uma causa”.
Em primeiro lugar, as toupeiras ascenderam ao poder por causa da própria degeneração e inaptidão das corujas que, há muito tempo no poder, julgaram-se seguras e começaram a tratar as coisas do mundo religioso com desdém. Seus sermões já não diziam nada, seus ensinamentos menos ainda, a administração era um caos, a Teologia tinha sumido dos púlpitos e a vida no lar deixava muito a desejar. Portanto, a escolha das toupeiras era o resultado direto da decadência das corujas.
Em segundo lugar, a escolha das toupeiras se deveu também a sagacidade desse animal, que neste ponto tem muitas semelhanças com uma antiga conhecida nossa que habitava os belos bosques do Éden (a serpente).
Muito embora fossem julgados animais pouco inteligentes pela maioria dos outros bichos, as toupeiras souberam aproveitar bem a situação de crise no âmbito religioso e com relativa facilidade alcançaram seus objetivos. Grandes oportunistas, era um termo que definia bem este pérfido animal.
As toupeiras perceberam que uma comunidade pouco instruída, revoltada e em crise, perdia a capacidade de escolher sensatamente seus líderes, o que lhes facilitava o empreendimento. Talvez fosse por isso que odiavam tanto o conhecimento e o estudo.
Elas (as toupeiras) também perceberam que o antigo critério de escolha que levava em consideração vários aspectos da vida do líder antes de escolhê-lo, havia sido suprimido e agora se recomendava para o ministério qualquer um que fosse julgado honesto, inteligente, bom orador ou que tivesse lido o grande livro religioso dos animais 50 vezes. Este último critério revelou-se, ao longo do tempo, como o mais equivocado de todos, uma vez que todo sacerdote deveria, obrigatoriamente, conhecer e ter lido o livro religioso dos animais, mas nem todos que conheciam e tinham lido o livro religioso dos animais tinham sido chamados para exercer o sacerdócio. Essa confusão de conceitos fez muitas vítimas no mundo religioso da floresta, algumas jamais se recuperaram.
Dessa forma, as toupeiras perceberam que não existia nada mais fácil do que ascender ao posto de sacerdote, já que não existia mais critério entre os outros animais para escolher os ministros religiosos. Assim, a crise se instalava tendo como principais protagonistas às toupeiras e algumas corujas que, em pleno exercício de ministérios fracassados, tentavam se manter no poder através de uma política intransigente e legalista.
Enfim, esta é a história da ascensão e consagração das toupeiras aos serviços religiosos. Sobre estas coisas, refletia um macaco solitário que morava no alto de uma árvore na floresta e que dizia consigo mesmo: “Quem não tem coruja apta se vira com toupeira; quem tem toupeira como sacerdote, vai de mal a pior”.
André Pessoa via Século XXI
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Há 3 horas
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