Diante da polêmica sobre o discurso de Jair Bolsonaro no Congresso, uma fala curta, mas carregada de ódio, uma vez que exaltou Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador da Ditadura Militar, acabei lendo um comentário de alguém que disse: “Ora, vocês cristãos criticam torturadores, mas amam um Deus que irá torturar, indefinidamente no inferno, almas condenadas à danação?”.
Na verdade, a citação era uma entre muitas, num diálogo bizarro, cheio de agressões, tendo como protagonistas crentes raivosos e um ateu astuto. Pois bem, a certa altura do imbróglio, que já adentrara no tema do inferno, o ateu citou a parábola do “Rico e Lázaro”, descrita por Lucas no capítulo 16. Foi um vexame! Os crentes silenciaram, ficaram estupefatos, não puderam contrapor a fala do próprio Jesus que assevera sobre um Homem Rico que foi condenado a sofrer os horrores do inferno e, sendo assim, é consumido por suas chamas implacáveis. Achei curioso o ateu saber mais bíblia que os crentes, mas...
Na verdade, a ideia de inferno que habita o inconsciente coletivo do ocidente cristão, nada tem a ver com o Evangelho ou com Jesus. Ler os textos que tratam do inferno no Novo Testamento sem ter conhecimento histórico e filosófico sobre o tema nos levará, irremediavelmente, a acreditar no inferno de Dante Alighieri, escritor italiano do século XIII, autor de famosa obra – O Inferno de Dante – sobre a “Casa do Tinhoso”, esse lugar onde há lagos de larvas, câmaras de tortura, fogo, enxofre, bestas insanas e homens desgraçados.
O inferno cristão é uma construção teológica que se inicia no exílio judaico, na simbiose de crenças babilônicas e egípcias com as concepções do Velho Testamento. Durante cerca de 400 anos, rabinos organizaram uma nova metafísica para o pós-morte, a qual sofreu, por último, a aditivação de elementos da cultura helênica, zeitgeist dominante no mundo antigo desde 300 a.C. Portanto, o “Ades” do Novo Testamento não tem nada a ver com o “Sheol” do Velho, é, por assim dizer, uma crença pagã convertida ao judaísmo.
Dito isso, chego à parábola do “Rico e Lázaro”, explicitada por Jesus. De fato, o que temos não é um texto elucidativo sobre o inferno, mas sobre o drama de se viver sem Deus no mundo, ainda que cumprindo os rigores da Lei. O público ao qual a mensagem se destina é essencialmente religioso, por isso o “Rico”, “abençoado” pelo Senhor, vai parar no tormento do inferno de fogo, enquanto “Lázaro”, um pobre purulento, tem como destino o céu e vive a graça de estar junto a Abraão.
Ora, parábolas são contos que tem como objetivo transmitir um ensinamento moral. Elas se utilizam de metáforas e alegorias, um universo rico em imagens e símbolos, sempre com o fim de facilitar o entendimento. Assim, a lição óbvia que Jesus traz na parábola do “Rico e Lázaro” é que devemos encarnar uma espiritualidade que nos leve a amar a Deus tendo a vida do nosso próximo como altar, ou seja, não devemos deixar que ninguém agonize em nossa porta, pois quando deixamos de fazer algo aos pequeninos, ao Senhor o negamos.
Observe que a parábola começa na Terra, passa pelo céu e pelo inferno, e retorna novamente a Terra, onde os irmãos do “Rico” estão a viver de forma descuidada e desafeiçoada. O inferno nesse conto é apenas uma cenografia, algo que já habitava o inconsciente daquela geração, por isso Jesus o utilizou como uma poderosa imagem para tratar do essencial, que é o fato de que não devemos deixar que em nós se instale o que há de pior para a vida. Inferno, muito antes de ser um lugar, é um sentir, você pode estar possuído do inferno mesmo sem, literalmente, vir a habitá-lo.
Portanto, ainda que de forma muito simplista, uma vez que num texto curto não dá para explorar o tema com profundidade, quero dizer que essa especulação de que Deus irá torturar indefinidamente as pessoas num caldeirão de fogo é uma crença mitológica e infantilizada. E com isso não estou negando a existência do inferno, tema que deixarei para abordar em outra oportunidade, mas apenas abrindo um espaço mental para novas percepções.
É mister esclarecer que todo texto que fala de inferno o faz de uma perspectiva filosófica, especulativa, uma vez que ninguém nunca foi lá e voltou para fazer um relato. Eu sei que a ortodoxia vai citar os textos do Apocalipse de João e os escritos de Paulo quanto ao cenário de horrores, mas, como disse, toda leitura sobre o tema deve partir da perspectiva das crenças vigentes nos dias de Jesus e também do fato de que os textos estão em linguagem apocalíptica, recheados de arquetipias, metáforas e alegorias, e assim devem ser interpretados.
Para mim, todavia, vai para o inferno aquele que odeia a vida, pois ele é o destino de quem insistir em viver sem Deus, como acontece com os demônios. Inferno é a existência sem a possibilidade de Deus, seu maior castigo é permitir que os indivíduos convivam com o pior de si mesmos sem uma alternativa para o arrependimento e o perdão. Esse é o significado do fogo que não se extingue, um símbolo da perpetuação daquilo que consome o ser para a morte e a não existência de salvação ou esperança.
Finalmente, quero lhe dizer que a bondade de Deus não combina com a maldade do inferno dos cristãos. A justiça de Deus foi feita na Cruz, onde tudo foi pago! Deus amou o mundo, não condenou o mundo, pois a misericórdia, por fim, triunfará sobre o juízo! Deus, um torturador? Jamais! Quem o conhece, sabe do que estou falando...
Carlos Moreira
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