Sobretudo no ocidente, a ideia de inferno povoa a mente da grande maioria das pessoas. Talvez esta seja, inclusive, uma das grandes inquietações do ser humano em todos os tempos: qual será o seu destino após a morte?
Céu e inferno são conceitos que estão intrinsecamente associados à religião. A Bíblia está repleta de citações onde ambos aparecem, o primeiro como sendo o destino dos bons e justos, o segundo como lugar de castigo eterno para os maus.
No que diz respeito ao cristianismo, foi na Idade Média em que as ideias sobre o inferno mais se popularizaram. Ao observarmos as pinturas daquele período, constatamos produções realmente bizarras, como o Diabo e seus anjos cozinhando pessoas em caldeirões de óleo fervente, por exemplo. Imagens como esta são símbolos que servem para criar conceitos e propagar valores. Sem dúvida, esse era o objetivo já naquela época.
Mas o que realmente é o inferno? Um lugar? Um sentir? Perguntas como essas só podem ser respondidas do ponto de vista da teologia ou da filosofia, pois ninguém jamais foi até ele ou de lá voltou para nos dar qualquer depoimento.
Por outro lado, há quem afirme que as Escrituras são muito claras com relação ao inferno. Ora, isso depende de quem as interpreta. Os textos que falam sobre inferno usam uma linguagem recheada de metáforas, alegorias e arquetipias — presentes na apocalíptica judaica e, por conseguinte, na escatologia cristã.
O conceito de inferno, como nós o entendemos hoje, foi sendo desenvolvido nas Escrituras. No Velho Testamento, ele simplesmente inexiste. Já no Novo, o que encontramos é uma construção cultural-religiosa que é consequência da história do povo Hebreu pós-cativeiro babilônico.
No que diz respeito ao Velho Testamento, o pensamento sobre o pós-morte e o inferno pode ser compreendido na leitura de Eclesiastes capítulo 9. Lá está dito: “Pois os vivos sabem que morrerão, mas os mor-tos nada sabem; para eles não haverá mais recompensa, e já não se tem lembrança deles”, (v.5). Em seguida encontramos: “O que as suas mãos tiverem que fazer, que o façam com toda a sua força, pois na sepultura, para onde você vai, não há atividade nem planejamento, não há conhecimento nem sabedoria”, (v.10).
O que vemos nesse texto é algo que denota uma espécie de apagão. Para os hebreus antigos, quando a vida terrena findava, se alguém morresse sem a consciência de Deus e de sua Graça, restava apenas ser semeado na terra. Em sombra e silêncio, a alma deveria aguardar o juízo final. Tais indivíduos passavam então a habitar o Sheol, termo hebraico que significa túmulo. Portanto, neste período, não existia a ideia de inferno.
Para entendermos como esta concepção mudou, precisamos voltar à época da destruição de Jerusalém pelo rei Nabucodonosor e o inevitável exílio ao qual o povo hebreu foi submetido. Naqueles 70 anos de escravidão, os israelitas tiveram contato com os persas e depois com outros povos. Eles já traziam em suas religiões as crenças a respeito de anjos, céu e inferno. Isso pode ser constatado tanto no zoroastrismo como no confucionismo.
A partir de então, rabinos judeus “simbiotizaram” esses saberes universais sobre o mundo invisível com as doutrinas vétero-testamentárias, o que culminou numa nova consciência: a imaterialidade escatológica. Ela pode, inclusive, ser percebida na literatura apócrifa do período intertestamentário.
Por isso, quando começamos a ler o Novo Testamento, logo percebemos a mudança, pois nos deparamos repetidas vezes com o nome grego “hades”, o qual, na cultura helênica, predominante naquele mundo, representava o deus das camadas inferiores e dos mortos.
Na verdade, aquele “novo pensamento” era, em síntese, o resultado de séculos de tradição rabínica inculcada na mente e no coração do povo. Essa foi à fenomenologia que produziu as representações que passaram a conceituar o pós-morte e o inferno.
Curiosamente, todavia, é “lendo” Jesus que melhor compreendemos o que é o inferno. O Galileu nos revela com clareza que há, pelo menos, dois tipos dele: um existencial e o outro escatológico.
O inferno existencial trata de uma ambiência onde a alma humana, não raras vezes, sucumbe. Podemos encontrá-lo em duas alegorias expostas no Evangelho de Mateus. A primeira está no capítulo 5 e fala daquele que mata o seu irmão com a língua, que reduz o outro ao desprezo absoluto e o segrega ao estado do não-ser.
A segunda está em Mateus 18 e trata do “credor incompassivo” que, mesmo após ter sua dívida impagável perdoada, age com inclemência contra aquele que lhe devia uns trocados. Em ambos os textos está dito que o indivíduo culpado será remetido à “prisão” e “dali não sairá até que pague o último centavo”.
Portanto, este é um tipo de inferno de onde se pode “entrar” e “sair”. Eu já estive neste “lugar” algumas vezes, em agonia de alma, solidão, sofrendo dores lancinantes em meu ser. Sim, este sentir pode também ser percebido na fala do salmista quando afirma: “laços de morte me cercaram e angústias do inferno, se apoderaram de mim; caí em tribulação e tristeza...”. Sl. 116.
Esse tipo de inferno existencial nós provamos em vida. Ele não é habitado, ao contrário, instala-se no coração de todo aquele que se deixa persuadir pelo mal. Sentimentos e ações que manifestam ódio, medo, julgamento, egoísmo ou inveja, dentre tantos outros, acabam enraizados no ser e, por conseguinte, transformam nossos “ambientes interiores” em masmorras escuras e frias.
O segundo tipo de inferno, o escatológico, nos revela que aqueles que se negarem a aceitar a Graça de Deus ficarão numa espécie de lapso de memória/tempo. Jesus se refere a ele afirmando que se trata de um “lugar” onde “o verme não morre e o fogo não se apaga”.
Essa expressão, na verdade, é uma alegoria que aponta para o vale de Hinom. Este local, nos arredores de Jerusalém, ficou conhecido como um lugar de morte e perversidade. Foi lá que o rei Manassés sacrificou seus filhos a moloque, um deus pagão. A prática passou então a ser feita pelos filhos de Israel, o que veio a se constituir abominação ao Senhor.
Nos dias de Jesus, o vale de Hinom chamava-se Geena e havia se transformado no lixão de Jerusalém, onde o fogo não se apagava, em decorrência dos incêndios que visavam incinerar os dejetos ali colocados. Era também um lugar fétido e pútrido, pois havia degeneração de restos alimentares e humanos, o que favorecia a ambiência para a proliferação de vermes.
Quando Jesus falou de inferno, usando o nome Geena, todos os que pertenciam àquela cultura imediatamente fizeram a associação ao local e compreenderam que se tratava de uma comparação.
Todavia, ao longo dos tempos, a interpretação da igreja acabou tornando literal o que era apenas alegórico, transformando assim o inferno num lugar de fogo e enxofre, de demônios e vermes, sofrimento e miséria. Em Jesus, está mais do que claro que o inferno não é localizável, pois não se enquadra em categorias espaço-temporal. Não se trata de um local, mas de algo de natureza dimensional.
E aqui cabe perguntar: será eterno este inferno? Será. Mas isto do ponto de vista da eternidade, onde o khronos (tempo) não é algo como em nossa dimensão. Na eternidade, a “medida” que vale é o Aeon, um tempo sagrado, desprovido de uma medida precisa, um tempo onde as horas não passam cronologicamente, o tempo de Deus.
Caio Fábio afirma: “o inferno durará uma eternidade, mas a misericórdia de Deus vai de eternidade a eternidade”. Assim, o que se pode deduzir, e isso com fundamentação bíblica, é que até mesmo o inferno terá o seu fim, pois, como sabemos, “a misericórdia triunfa sobre o juízo”. Sim, a Graça já proveu todas as coisas!
Eu penso que a grande questão a ser entendida é que o inferno não foi criado para homens e sim para o Diabo e seus anjos! Quem pode acreditar num Deus de amor que, uma vez tendo concluído o seu plano, julgados os pecados de sua criação, irá enviar para um lugar de trevas, fogo e dor eterna as almas dos que não corresponderam às suas expectativas? Quem quiser que creia nesse deus! Menos eu!
O apóstolo Pedro pode nos levar a entender melhor este inferno escatológico. Em 1ª. Pe. 3:19, lemos: “no qual também foi e pregou aos espíritos em prisão que há muito tempo desobedeceram, quando Deus esperava pacientemente nos dias de Noé”.
Neste texto, Pedro usa a expressão “tártaro”, a qual estava associada à cultura helênica e representava uma subdivisão do hades. No tártaro ficavam todos os que haviam pecado deliberadamente contra Deus, ou seja, os homens maus.
Pois foi justamente a este “lugar” dimensional que Jesus se dirigiu quando morreu fisicamente. Ele entrou lá e anunciou: “Vencida foi a morte! Quem deseja aceitar a Graça de Deus?”. E assim, toda aquela geração teve uma nova oportunidade, pois, onde quer que uma consciência se acenda para a Boa Nova do Evangelho, dali sairá imediatamente para entrar na festa do perdão e da misericórdia.
Por outro lado, não é absurdo supor que alguém que chegou um dia a “habitar” o inferno, ainda que por um instante/momento, acabe por se tornar “diabo”. Assim, imagino que haverá aqueles que, deliberadamente, se recusarão a aceitar o Cordeiro e, sendo assim, perecerão. Sim, há um tipo de sentimento que se instala no coração para a morte, pois impermeabiliza o ser para o amor e, desta forma, quem o carrega, receberá justa punição.
Para esses que transgredirem e não aceitarem, em hipótese alguma o amor de Deus, haverá apenas juízo, pois eles serão lançados neste “lugar” e lá ficarão, “até que paguem o último centavo”, usando aqui a alegoria já exemplificada.
Ao final, o que teremos, após o juízo, está revelado no texto de Apocalipse 20:14, que nos afirma que: “A morte e o inferno foram lançados no lago de fogo...”. Nesta ocasião, quem estiver lá “dentro”, tendo rejeitado em todas as instâncias o perdão de Deus mediante sua Graça, estará sendo destruído para sempre.
Tanto o Diabo e os seus anjos, quanto os homens, deixarão de existir. Os homens perderão a consciência de si mesmos, sendo transformados em não-ser e, por fim, se nadificarão.
Eu sei que estou tocando numa questão paradigmática. Há gente, inclusive, que se soubesse que o inferno — tendo como referência este lugar que habita o inconsciente coletivo da cristandade — não existe de fato, talvez deixasse de amar a Deus e caminhar com Jesus.
O que percebo, no epílogo da existência humana, é que tudo é Graça e Misericórdia, pois apenas o que diz respeito ao amor se eternizará. O mais, tudo o mais, será extinto, passará o céu e a terra, mas o amor sobreviverá!
É minha convicção que na eternidade com Deus não haverá paraíso e inferno, ambos coexistindo paralelamente, simultaneamente. O que nos aguarda quando tudo estiver reconciliado com o criador, será aquilo que “nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano...”, pois Deus assim o quis.
Para mim, inferno sempre remeteu a algo que trata da separação de Deus. Viver sem Deus é existir no absurdo, entregue à própria sorte, e isso, nem mesmo o Eterno permitirá. Como se diz no jargão popular: “quem viver verá!”.
Carlos Moreira