Ontem à noite eu me vi diante de uma cena inusitada... Minha
filha Gabi colocou na orelha um brinco e ele entrou na pele, o que fez com que
a região inflamasse e sua retirada se tornasse algo extremamente doloroso.
Sei que Gabriela ama a mãe loucamente, confia nela
cegamente, mas aquela situação a fez agir de forma inusitada. Ela corria de um
canto para outro e não deixava a gente, sequer, se aproximar para ver o que precisava ser feito.
Em certo momento, senti a angústia nos olhos de Fabiana, algo do tipo: “milha filha, ou você confia ou não confia!”.
É fácil manter a confiança quando o contexto é favorável,
quanto o problema é contornável, quando os envolvidos são confiáveis, quando as
medidas a serem tomadas são palpáveis. Mas, e quando não?...
Aqui surge uma questão: como confiar quando os fatos são contrários, quando Deus se
torna “indisponível”, ou o céu mostra-se impermeável, quando o “telefone” do
Altíssimo fica dando “caixa postal”? O que fazer no momento em que as coisas,
aparentemente, não possuem sentido ou lógica, e o caos aproxima-se de nós com um
apetite voraz?
Como todos sabem, gosto muito do profeta Habacuque. Trata-se de um homem suigeneris, pois, ao invés de começar
seu ministério confrontando aos homens, ele parte para questionar o próprio Deus. Por
isso, de cara, me apaixonei por ele, pois em Habacuque não existem
“salamaleques” para com o sagrado, ele é um ser perplexo em busca de respostas,
assim como eu.
A questão central no livro de Habacuque é o afastamento de Israel da comunhão e intimidade com Deus. Profeta do período pré-exílico,
ele constatou que o bem se afastara da vida dos seres humanos, assistiu ao
desvirtuamento das relações, viu o poder sendo usado para esmagar o próximo, o
estabelecimento da corrupção, da volúpia por sangue, da ganância, do desamor como praxis,
ou seja, a inexistência de todos os matizes dos quais é constituída a matriz de
valores do Evangelho.
Depois de insistentes questionamentos sobre o fato de Deus
está, aparentemente, inerte a toda aquela situação, Habacuque recebe, então, a
sua resposta. Foi impossível não lembrar de Guimarães Rosa “esperar é reconhecer-se incompleto”. Ah, coisa difícil é esperar...
sobretudo, esperar por Deus... Ele parece sempre estar indisponível no dia da
calamidade, da dor, da solidão, da tragédia.
Todavia, a resposta que Deus deu ao profeta não lhe agradou. Ele estava preparando, como “vara de juízo” sobre o Seu povo, uma nação ainda mais
perversa, corrupta e dura: os Assírios. Aí o profeta foi à loucura! “Como assim Deus?! Você vai nos disciplinar
usando gente mais corrompida do que nós mesmos?!”.
Sei que não está escrito no livro de Habacuque, mas, neste
ponto, penso que Deus questionou o profeta: “afinal, você confia ou não confia?”. E é justamente aí, em meio à
perplexidade, ao inexplicável, ao ilógico, ao contraditório, ao irracional, ao
desconexo, que surge um homem resignado a obedecer e aceitar os desígnios do
amor de Deus, pois, mesmo quem ama, tem de ser firme.
“Ouvi isso, e o meu íntimo estremeceu, meus lábios tremeram; os meus ossos desfaleceram; minhas pernas vacilavam. Tranqüilo esperarei o dia da desgraça que virá sobre o povo...”.
A lição que tiramos da vida deste homem é que confiar não é uma ação que nasce na consciência, mas no coração. Confiar é lançar-se no absurdo, no insondável, é abrir mão de racionalizações, de conjecturas. Confiar é resignar-se, aquietar-se, render-se, sublimar-se, é ir na contra-mão, no contra-fluxo, esperar o inexplicável, aguardar o improvável, ter a certeza de que, ainda que contra todas as evidências, Deus nos fará bem e nos trará a paz.
Habacuque nos ensina que ainda que o fluxo natural da existência – “mesmo não florescendo a figueira, não havendo uvas nas videiras; mesmo falhando a safra de azeitonas, não havendo produção de alimento nas lavouras, nem ovelhas no curral nem bois nos estábulos”, seja, por algum motivo, alterado, ainda assim ele confiará no Senhor, pois diz: “exultarei no Senhor e me alegrarei no Deus da minha salvação”.
O nome Habacuque significa “abraçado por Deus”. Não sei o que se passa em sua vida, mas eu, particularmente, tenho vivido dias muito difíceis... Algo, entretanto, me fala ao coração: “filho muito amado, foste fiel no pouco, sobre o muito te colocarei, recebe o abraço do teu Pai”. E eu lhe pergunto: “do que mais precisarei?”.
Carlos Moreira