Introdução
Na última
quinta-feira, através da publicação da revista Veja, nos deparamos com os
detalhes da decisão inédita do Supremo Tribunal Federal sobre duas matérias de
suma importância para o povo brasileiro.
No julgamento da
primeira ação, proposta pelo governo do Rio, o STF reconheceu que as uniões homoafetivas – casais do mesmo sexo – passam a ter
os mesmos direitos das uniões de casais heterossexuais. “O objetivo é que os
servidores tenham assegurados benefícios como previdência, concessão de assistência
médica e licença”.
A segunda ação dizia
respeito a uma petição da Procuradoria-Geral da República. Ela reclamava “além
do reconhecimento dos direitos civis de pessoas do mesmo sexo, declarar que uma
união entre estas pessoas é uma entidade familiar”.
Essa decisão, na prática, permite que tais casais possam, por exemplo, adotar
filhos ou pleitear que seus relacionamentos sejam convertidos em casamentos.
Polêmicas a parte, pois
após a decisão veio de imediato uma reação política quanto à competência do STF
de tratar questões que deveriam ser, prioritariamente, conduzidas pelo
Congresso Nacional, o que está diante de nossos olhos é o prenúncio de
profundas mudanças que se estabelecerão no cenário sócio-cultural-religioso de
nosso país.
Colocados estes pontos,
surge à questão central da qual trata este artigo: “e nós, na condição de
cristãos que somos, como devemos nos posicionar frente a estas decisões?”.
Instâncias de Poder na Época de
Jesus
Antes de
qualquer consideração, quero trazer-lhe uma porção das Escrituras: “Ele lhes
disse: "Portanto, dêem a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus"
Lc. 20:25. Para que você
possa discernir a profundidade e as implicações da resposta de Jesus, é
fundamental compreender as funções de duas instâncias político-religiosas da
nação de Israel em Seu tempo: o Rei e o Sinédrio.
Desde o ano 4 a.C a Galiléia era governada por
Herodes Antipas, que reinou até o ano 39 d.C. Ele era um déspota, dono absoluto
de tudo, homem que não devia e não prestava contas a ninguém, além de não
possuir ética alguma, contudo, por pertencer a uma linhagem “real”, era temido e
aceito pela grande maioria do povo como autoridade política. Mas, na realidade, quem governava de fato a Palestina, desde 63 a.C., eram os romanos. De fato, Herodes
era só uma marionete nas mãos do império, um “inocente” útil, uma figura
caricata, aparentava ter poder, mas, na verdade, fazia apenas o que lhe era
ordenado.
O Sinédrio, por outro
lado, e de forma bem diferente, representava o supremo tribunal dos judeus em
Jerusalém, uma espécie de senado, e sua influência se estendia tanto a Judéia
quanto a Galiléia, além de possuir o controle do Templo. Sua função primordial
era julgar assuntos da Lei quando surgia algum tipo de discórdia e sua decisão
era final, não cabendo qualquer apelação. O Sinédrio era composto por 71
membros, sendo a grande maioria pertencente ao partido dos Saduceus, os quais
representavam o poder, a nobreza e a riqueza.
Voltemos ao texto. Se
você for ler todo o capítulo, perceberá que a discussão de Jesus é com mestres
da Lei, sacerdotes e líderes religiosos. Eles queriam apanhar Jesus em algum
tipo de contradição, fato que seria suficiente para levá-lo diante do Sinédrio
(instância religiosa). Por outro lado, se ele cometesse algum tipo de
transgressão civil, como um motim, poderia ser levado ao rei Herodes (instância
política) e este, por sua vez, o encaminharia para ser julgado pela autoridade
romana competente, no caso, Pilatos.
Mas a armadilha não
funcionou. A resposta de Jesus deixou todo mundo de “calça curta”, foi um
verdadeiro “xeque-mate”: “dêem a César o que é
de César, e a Deus o que é de Deus". Nela nem se podia encontrar
violação contra o império, nem muito menos transgressão religiosa. A questão
aqui é: Jesus ficou em cima do muro? Tendo sido ousado em tantas outras
questões, “amarelou” nesta?
Eu sempre
achei curioso o fato de Jesus não entrar no tema em si, de não questionar se o
imposto era certo ou errado, justo ou injusto, devido ou não, se seu destino
era para realizar o bem ou apenas para servir de instrumento de enriquecimento
ilícito de uns poucos. Na verdade, Jesus fez uma dicotomia perfeita: separou a instância
política dos preceitos da religião, e mesmo assim não deixou de pontuar o que
era concernente ao Reino de Deus; pôs cada coisa em seu devido
lugar!
O Estado Moderno e a Igreja
Como devemos nos
posicionar quanto às decisões do STF? Bem, antes de dizer o que penso, deixe-me
trazer uma questão conceitual importante sobre a diferença que há entre o poder
do Estado e o “poder” da Igreja.
Citando Gustavo Biscaia
de Lacerda, Mestre em Sociologia Política pela Universidade Federal do Paraná, “a
separação entre a Igreja e o Estado é um dos princípios basilares do Estado
brasileiro e, na verdade, do moderno Estado de Direito. Embora em um primeiro
instante pareça que ele refere-se apenas à impossibilidade de o Estado não
professar nenhuma fé, ele tem outras aplicações. A separação entre Igreja e
Estado não é apenas um princípio negativo, que veda ao Estado a profissão de fé
ou à Igreja de intrometer-se nos assuntos estatais; na verdade, o que ele consagra
é a laicidade nas questões públicas, no sentido de que não se faz – não se deve
fazer – referência a religiões ao tratar-se das questões coletivas”.
“Traduzindo em miúdos”,
no Brasil, desde a constituição de 1.891, Igreja e Estado são instituições separadas,
que possuem suas próprias leis e jurisdições, e que não podem interferir uma
nas ações da outra.
Eu estou certo de que
nós teremos muitos protestos, em todo o país, quanto a estas decisões polêmica
do STF. Várias instituições religiosas, tanto católicas quanto protestantes, se
manifestarão contundentemente de forma contrária. Meu pensamento, todavia, é
diferente, e aqui falo por mim mesmo, não sendo representante de nada nem de
ninguém a não ser de minha própria consciência.
Parte do texto da ação impetrada
pelo governo do Rio de Janeiro diz o seguinte: “... Não reconhecer essas
uniões contraria princípios constitucionais como o direito à igualdade e à
liberdade, além de ferir o princípio da dignidade da pessoa humana”.
Conclusão
Para mim, há duas formas
de um cristão se posicionar frente a estas questões. A primeira é reconhecer o
direito do Estado de fazer cumprir as leis, de agir de forma justa quanto à
coletividade, de buscar o bem comum independentemente de raça,
credo, cor, orientação sexual, ou qualquer outra questão que produza
diferenciação, exclusão ou acepção.
Se você me perguntar se
eu acho que os gays têm direito a dignidade, direito a receber benefícios aos
quais, mediante a lei, façam jus, direito a ser tratados com equidade, eu lhes
direi que sim, pois penso ser esta uma questão de Estado e que nos remete ao
princípio inalienável da dignidade humana. O fato de discordar da forma como
vivem do ponto de vista de sua orientação sexual não é motivo para desejar
privá-los de seus direitos civis. E mais, acho que eles possuem os mesmos
direitos dos adúlteros, dos mentirosos, dos facciosos, dos sonegadores do
imposto de renda, dos avarentos, dos egoístas, dos jactanciosos e dos
fofoqueiros. Fico por aqui para não ter de citar a lista de todos os pecados
que cometemos, eu e você...
A segunda forma de
responder a estas questões me retira do âmbito do Estado e me coloca dentro da
“jurisdição” do Reino de Deus. Por esta perspectiva, se você me perguntar se um
casal gay pode ser considerado uma “entidade familiar” eu lhe direi que não,
pois isto fere um princípio das Escrituras onde Deus estabelece a família como
sendo a união entre um homem e uma mulher. Ainda assim, terei de acatar a
decisão do Estado, por ser ela de caráter civil, e por ser o Estado laico, mas dou-me ao direito
de, na Igreja, pensar de forma diferente, não estabelecendo assim tal decisão
como parâmetro ou padrão para a comunidade de fé.
E mais, sendo eu
partícipe de uma sociedade democrática, dou-me ao direito de expor meu
pensamento de que o Estado pode ir até certo ponto e de que o Evangelho,
encarnado em Jesus, vai a partir de então, pois, sendo confrontados um contra o
outro quanto a princípios estabelecidos nas Escrituras, “seja Deus verdadeiro e todo homem mentiroso” uma vez que “importa agradar primeiramente a Deus, e não
aos homens”. Se esta conta ficar cara, e me cercear meu direito de
liberdade, de exercício ministerial, gerar perseguição, ou seja lá o que for,
terei uma grande oportunidade de provar qual a natureza, significado e propósito
de minha fé.
Assim, resumindo, eu diria o seguinte: “daí aos gays o que é dos gays e a Deus o que é de Deus”. Não deixarei de pregar que o padrão das Sagradas Escrituras para a sexualidade humana é a união entre homem e mulher, mas também não permitirei que minha consciência seja cauterizada pela caducidade da “letra” que mata em detrimento do Espírito do Evangelho, não me darei ao desplante de "coar mosquitos e engolir camelos", não distorcerei a justiça sendo tendencioso por causa de questões que a Igreja condena, não ficarei cego quando o assunto tratar do que é justo quanto à dignidade humana em razão de preconceitos religiosos, pois fui chamado para ser portador da Graça, não do juízo, quero anunciar a Salvação, não a condenação, ser instrumento do Amor, não do ódio. Quem achar ruim, que vá fazer piquete na rua!
Carlos Moreira