Teorizar sobre o bem é, talvez, uma das mais perversas formas de piedade. E nós, que fazemos parte da igreja contemporânea, somos protagonistas deste tipo de “teologia” que traz como dogma a doutrina do “viva e deixe morrer”. Tal descaso, na melhor das hipóteses, revela uma gangrena de alma, a lepra do egoísmo tornando insensível o coração que evita, a todo custo, amar a Deus no outro.
Num tempo de casas apaineladas e pessoas vazias, a dor desfila perfilada ao meio dia, na nossa porta, mas o drama real, para nós, mais parece trama da ficção. Do alto de nossos apartamentos, contemplamos o sofrimento dos que se esgueiram atrás de um prato de sopa, um corte de estopa, um gesto, um olhar, um pedaço de pão.
Tornamo-nos, sem perceber, quais Jonas, o profeta de Samaria. Sim, o homem que foi abduzido até as entranhas do Leviatã, que se viu alçado ao absurdo, sem saída, sem expectativas, no “antro da Terra”, clamou a Deus e foi salvo, sobretudo, de si mesmo, do monstro do egoísmo que nele habitava.
Esse mesmo Jonas, todavia, é aquele que se senta nas colinas de Nínive para observar, placidamente, o desespero e a dor humana. Durante um dia inteiro, ele anda cerca de cem quilômetros, de uma ponta a outra da metrópole, anunciando a destruição iminente, e apresentando o arrependimento como única alternativa de salvação.
A partir daí, o imponderável aconteceu, pois quem pode impedir o agir do Espírito de Deus em busca de um coração quebrantado? Sim, Deus não suporta um pecador arrependido, não resiste ao contrito de alma. Sobre a esplendorosa capital da Assíria foi derramado um orvalho de consciência que escorreu pelos becos da alma dos ninivitas e foi ao mais profundo do ser.
Eis agora os habitantes da cidade, vestidos de pano de saco, pranteando pelas calçadas, jejuando dentro de suas casas, esmolando o perdão. Percebe-se, claramente, que ali houve um surto de auto-percepção provocando não só um verniz de tristeza, mas o desejo verdadeiro de mudar a vida. Aquela era uma gente perdida, sem valores ou princípios, que não sabia discernir entre bem e mal, entre certo e errado.
São nestes cenários dantescos onde mais se precisa de um profeta. Quem está saindo da escuridão na qual a mente esteve aprisionada, necessita, desesperadamente, ver a luz da salvação, do Evangelho! Mas onde está Jonas? Nas ruas, acolhendo os caídos? Nas casas, consolando os aflitos? Não. Jonas está na colina, absorto, teologizando a dor, discutindo com Deus sobre suas razões, amaldiçoando sua vida porque o Altíssimo não quis ouvir seus conselhos.
E nós, onde estamos? O que estamos fazendo pelos desabrigados das chuvas, pelos famintos do sertão, pelos viciados das craconlândias? Gente que precisa de amor que se faz ação, e não de pregação que se traduz em inércia de pernas e braços. Somos discípulos de Jonas, não de Jesus! Estamos nos montes de Nínive, contemplando o horror, enquanto esperamos, anestesiados, que Deus faça o seu milagre...
Não esqueçamos, todavia, que um dia fomos libertos do “interior do peixe”, do imponderável no qual existíamos, das trevas de nossa alma para a Sua maravilhosa luz, não para sermos espectadores das tragédias humanas, mas povo solidário com o sofrer do outro que ao nosso lado está.
Portanto, é mister que caminhemos sempre em direção a Nínive, este lugar onde a vida agoniza em plena luz do dia, onde há cheiro de morte por todos os lados, e não encolhamos nossas mãos ao aflito, pois o verdadeiro profeta tem sempre que ir aonde a dor está...
Carlos Moreira