A novela de Jó, descrita nas Escrituras, é maravilhosa e assustadora. De forma inusitada, ela vai de um extremo ao outro da existência. Em um frame, Jó é homem reto, temente a Deus, inculpe e bem sucedido. No outro, todavia, sua vida se torna uma catástrofe: seus filhos morrem, seus bens são destruídos, sua mulher o deixa e seus amigos se revelam tiranos.
Tanta desgraça assim não há quem possa suportar, nem mesmo Jó! Como era de se esperar, sua alma somatiza perdas e danos e derrama sobre o corpo, como larvas de um vulcão, toda a dor e incompreensão que lhe afligem em forma de úlceras e tumores, que vão da planta dos pés até a cabeça. Como bem citou Shakespeare: “Chorar sobre as desgraças passadas é a maneira mais segura de atrair outras”.
E foi assim que Jó, no auge de seu desespero, desencaixado do seu centro gravitacional, desencontrado de sua alma, vasculhou nos escombros de seu íntimo uma nesga de racionalidade e suspirou: “... aquilo que temo me sobrevém, e o que receio me acontece”. Jó 3:25.
De fato, sem qualquer explicação lógica ou motivo aparente – como não raro acontece na programação dos dias –, Jó havia se transformado num para-raios às avessas, capaz de atrair para si toda negatividade e desgraça que pairasse sobre nuvens escuras em dias sombrios.
Observado por esse prisma, ele passa a ser arquetípico, uma representação da materialização da desgraça, da negatividade humana e de tudo que se instala no ser para esculpir o mal. Resta a Jó apenas, como humano que é, entregar-se ao pessimismo e sucumbir à depressão. Cercar-se de racionalizações na busca insana e inumana de explicações e culpados, de justiça!
E é aqui que eu entro, qual um Quixote andante, para descrever uma coisa que a vida tem me ensinado: tem muito “João” por aí que deveria ser apenas João, mas, na verdade, não passa de um Jó disfarçado de “João”. E aqui me refiro a Jó não apenas como modelo de fé e resignação, mas na inteireza de quem ele é, desvelado o seu “dark side ”, pois todo ser é a soma do bem e do mal que nele habita. Nesse sentido, não há personagem bíblico tão de carne e osso quanto Jó.
Vendo os fatos dessa perspectiva, é fácil fazer correlações e perceber que tem gente que faz mal, ainda que este não seja necessariamente o caso de Jó. Sim, há pessoas que são capazes de fazer o sol se pôr ao meio-dia! É gente densa, cinzenta, que tornou-se uma espécie de “buraco negro”, atraindo para si tudo de ruim que gravita ao redor, pois nem mesmo a luz pode delas escapar. Gente assim é “tarja preta”, deve ser evitada, pois certamente causará danos a quem gravitar por perto.
Tenho visto, de forma recorrente, que tais pessoas são capazes de destruir tudo o que encontram pelo caminho, sobretudo pessoas, e fazem isso lhes roubando o sono e até a alegria de ser. Triste, entre-tanto, é saber que, na maioria dos casos, isso não lhes dá prazer, antes, pelo contrário, serve apenas para soterrá-las em si mesmas ainda mais.
Quando a alma chega nesse estágio, os “apetites” normais da vida acabam lhe fugindo. Em seu lugar, entretanto, surge uma “fome” insaciável de tristeza e pessimismo, pois a pessoa acaba se viciando em “devorar” aquilo que lhe mata, traga a miséria com satisfação e bebe do cálice da amargura com sofreguidão.
Se há cura para isso? Há sim, mas, para tal, “João” terá de percorrer o mesmo caminho existencial que percorreu o seu amigo Jó. E qual é esse caminho? Bem, como ele mesmo afirmou: “Meus ouvidos já tinham ouvido a Teu respeito, mas agora os meus olhos Te viram. Por isso menosprezo a mim mesmo e me arrependo no pó e na cinza”. Jó 42:5-6”.
O caminho que refaz o ser para a vida, que ressignifica os dias e que dá cor à flor e sabor ao pão é a experimentação da Graça como verdade capaz de curar a alma de todos os seus males, pois só assim é possível saber que, mesmo em meio à perda e à dor, há sempre um significado maior para o que nos acomete, uma vez que absolutamente tudo conspira para o bem dos que amam a Deus! Foi assim com Jó e será assim com todo e qualquer “João”.
É por isso que vos afirmo que toda cura passa, irremediavelmente, pela experimentação da Verdade como caminho caminhado, e não como teoria, doutrina ou ensinamento! Os olhos precisam ver a Graça, pois ouvir apenas não basta, e isso a partir de uma nova consciência.
Quem assim o fizer será capaz de aprender a degustar, no banquete da vida, tudo o que lhe for servido como dádiva do amor, pois só dessa forma é possível brotar a pacificação que produz paz e bem ao ser.
Carlos Moreira