Eu sei que “a coisa mais certa que a vida inventou foi a morte”, que nós, irremediavelmente, rumamos ao seu encontro. Estou informado, pelos Evangelhos, de que Jesus a venceu e, conforme o escritor de Hebreus, que essa vitória teve como objetivo livrar-me de todo pavor que ela produz. Tenho consciência de que aqueles que morrerem em Cristo, com Ele também ressuscitarão e ainda que, para Deus, ninguém jamais morre, pois, pelo sacrifício do Cordeiro, passam da morte para a vida eterna. Contudo, devo admitir, a morte me incomoda profundamente.
Teologicamente, eu sei que a morte veio com o pecado e, filosoficamente, entendo-a como eterno retorno, ou como afirmou o teólogo Leonardo Boff: “A morte é sim o fim da vida, mas fim entendido como meta alcançada, plenitude almejada e lugar do verdadeiro nascimento”. A morte está associada ao devir ou, como disse o filósofo Nietzsche, à possibilidade de, enfim, tornarmo-nos aquilo que de fato somos, a alternativa que temos para que se viabilize, finalmente, o projeto para o qual fomos concebidos. Mas, ainda assim, ela me inquieta e me intriga.
Tenho convicção de que isto não acontece com você, pois você tem uma fé inabalável e todas as certezas que me faltam. Mas não posso negar que, em cada funeral que participo, me vejo diante de perguntas ainda sem respostas. Sim, enterros e velórios me trazem certo vazio, uma melancolia impertinente para alguém que vive as dinâmicas do sagrado. Mesmo discernindo nas homilias todos os versículos que falam da ressurreição e da vida pós-morte, das promessas de perdão e consolo, não consigo fugir ao fato de que olho para a morte com rancor, com sentimentos de impotência e incompetência.
O que a morte abre como perspectiva não compensa o que elimina de potencialidades. De forma precisa, ela põe fim à criatividade, à engenhosidade humana, sua capacidade de inventar e inverter.
Mesmo compreendendo o escritor do Eclesiastes quando afirma: “Melhor é o fim das coisas do que o seu princípio”, sinto-me constrangido por não aceitar completamente os desígnios do “Totalmente Outro”, usando aqui a expressão de Karl Barth, teólogo da Basileia. Talvez, na minha falta de fé, esteja mais identificado com o que afirmou Mário Quintana, “a morte não melhora ninguém...”.
“Estou pressionado dos dois lados: desejo partir e estar com Cristo, o que é muito melhor; contudo, é mais necessário, por causa de vocês, que eu permaneça no corpo.”, Fp.1:23-24.
Só mesmo Paulo... Está pronto para ir de encontro à morte, pois a vida, com todos os seus matizes, já foi vivida, e em nada mais o fascina ou desafia. Ao mesmo tempo, todavia, está disposto a abrir mão da vida que só pode ser experimentada após a morte, com vistas a que, através de sua morte-vida, os que ainda não receberam em si mesmos a semente da eternidade possam ser ressignificados e preparados para enfrentá-la.
Eu já tive a tristeza incomparável de enterrar meu pai e minha mãe. Mesmo tendo a certeza de que os encontrarei muito em breve, não posso negar a dor que senti. No funeral, muitos esperavam que eu, como homem da religião, pregasse em ambas as ocasiões. Imagina se eu não poderia desprezar uma oportunidade daquelas para “evangelizar” os perdidos? Perdoe-me Senhor, mas não pude fazer tal coisa.
Meu coração estava coberto de ambiguidades: de um lado confortava-me o fato de saber que Jesus é a ressurreição e a vida e que todo aquele que nele crê, ainda que esteja morto, viverá! Do outro, entretanto, estava um ser humano sentindo-se abandonado na avenida por onde passam as coisas concernentes à vida, pois, sendo filho único, percebi-me como alguém que não tinha mais raízes, havia sido desterrado, estava solitário e coberto de solidão.
Só mesmo Paulo... Está pronto para ir de encontro à morte, pois a vida, com todos os seus matizes, já foi vivida, e em nada mais o fascina ou desafia. Ao mesmo tempo, todavia, está disposto a abrir mão da vida que só pode ser experimentada após a morte, com vistas a que, através de sua morte-vida, os que ainda não receberam em si mesmos a semente da eternidade possam ser ressignificados e preparados para enfrentá-la.
Eu já tive a tristeza incomparável de enterrar meu pai e minha mãe. Mesmo tendo a certeza de que os encontrarei muito em breve, não posso negar a dor que senti. No funeral, muitos esperavam que eu, como homem da religião, pregasse em ambas as ocasiões. Imagina se eu não poderia desprezar uma oportunidade daquelas para “evangelizar” os perdidos? Perdoe-me Senhor, mas não pude fazer tal coisa.
Meu coração estava coberto de ambiguidades: de um lado confortava-me o fato de saber que Jesus é a ressurreição e a vida e que todo aquele que nele crê, ainda que esteja morto, viverá! Do outro, entretanto, estava um ser humano sentindo-se abandonado na avenida por onde passam as coisas concernentes à vida, pois, sendo filho único, percebi-me como alguém que não tinha mais raízes, havia sido desterrado, estava solitário e coberto de solidão.
Sei que bom seria se eu aqui dissertasse mais profundamente sobre aquelas frases clichês que se recitam em enterros, frases do tipo: “ele agora está com Jesus”, ou “estava sofrendo muito, enfim descansou”, ou ainda “este é o caminho de todo vivente”.
Na verdade, todavia, não estou disposto a disfarçar minhas incongruências. A morte não me alegra o coração, não me dá prazer, nem me traz consolação. Perdoa-me, Pai, por ainda pensar assim, por não aceitar esse fim, e muda isso que reside em mim e que resiste ao que só concerne a Ti.
O que sei, e é fato, é que a morte será mesmo o último inimigo a ser vencido, e eu sei que assim será, quando o meu dia chegar. No derradeiro instante, no último lampejo de luz, trarei a mim as Escrituras e lhe direi na face: “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está o teu aguilhão?”.
E assim, num abrir e fechar de olhos, deixarei para traz tudo o que fui e me revestirei de tudo o que sou. E será só aí que poderei compreender com total consciência e clareza as sábias palavras de Ernst Bloch, filósofo marxista alemão: “O verdadeiro Gênesis não está no começo, mas no fim”.
Carlos Moreira