O “espírito”
do hebreu é um “espírito” errante, desalojado, sem solidez, desarraigado, livre.
Ele não permite que se cavem estacas profundas ou que se construam armações de concreto. O
hebreu é viajante, é caminhante da terra, é ser sem destino, homem de tendas,
construtor de altares. Tal como a brisa que passa, ou a pegada que se apaga na
areia enquanto se caminha, assim é o hebreu, um caminhante da existência.
Eu não sou
filho de Abraão, não pertenço a nenhuma das 12 Tribos, não possuo o “DNA” dos
israelitas, não estou incluído nas Promessas, contudo, fui enxertado na
“Videira” e convidado ao “banquete”, pois me tornei filho e herdeiro de todas
as coisas mediante a fé em Jesus de Nazaré. Desta forma, passei a fazer parte
da Família, recebi do mesmo Espírito, bebi do mesmo “cálice”, fui crucificado
na mesma cruz e batizado na mesma morte, ressuscitei mediante o mesmo Poder e, tendo
nascido de novo, recebi o desafio de andar como caído redimido.
Quando eu
achava que tudo já havia se acomodado dentro em mim, que as “pedras” do
caminho, todas elas, já haviam sido recolhidas ao abrigo, chegou à hora de
levantar novamente a minha tenda e me lançar ao sabor do vento. Depois de
tantos anos, pensei que havia encontrado um porto seguro. Mas aquele que veio
morar dentro de mim me chamou a novas paragens e a novos desafios.
Foram 14
anos desde a última “mudança”. Tempo de crescimento, tempo de dores. Aliás, sem
dores não se cresce, não se amadurece, não se expande nem a mente nem o
coração. Foi um tempo de conhecimento, de preparação, talvez, para algo maior.
Sou grato por estes anos, por tudo o que eles produziram em mim, cicatrizes de
amor, marcas de esperança, tatuagens de sonhos acalentados.
Decepções?
Tive muitas... A maior de todas, comigo mesmo. Conheço-me melhor agora, bem
mais do que me conhecia antes, sei do que sou capaz, percebo minhas
inconcretudes, ansiedades e contradições. O tempo me fez mais fraco, mais
manso, mais quebrantado. Um dia destes pensava ser de aço. Hoje, sei que sou
apenas de osso. Do pó vim e ao pó voltarei.
Meu amigo
André Pessoa me ensinou que crente é feito gato, apega-se a lugares, não a
pessoas. De fato, sempre que parti e deixei algo para trás, jamais consegui
manter o que dantes havia construído. As amizades se esvaem, os projetos se
desfazem, os sonhos se esfarelam como estátuas feitas com areia do mar. Tudo
passa, se perde, se esquece, se apaga...
Fiz um
balanço dos últimos anos... Para minha tranqüilidade, errei muito mais do que
acertei, perdi muito mais do que ganhei, encontrei-me em contradição muito mais
do que calcado em certezas. É bem provável que tenha produzido mais lágrimas do
que sorrisos, ferido amigos, frustrado ouvintes, decepcionado até os que jamais
me conheceram. Servi menos do que deveria, ouvi menos do que poderia, amei
menos do que pretendia. Não raro meu discurso produziu apenas eco, pois as
palavras não se materializaram no chão da vida. Ergui castelos e vi-os cair
diante de meus olhos.
Mas não é a
vida assim?! O que esperava eu? A perfeição? O aplauso? O elogio? O
reconhecimento? A unanimidade? Ora, quem sou eu a não ser homem feito de barro,
suor e sangue. Quem sou eu a não ser alguém que caminha para dentro em busca de
si mesmo. Quem sou eu a não ser um miserável resgatado pela graça, um perdido
encontrado pela misericórdia, um desviado perseguido pelo amor, um errante
salvo pela fé?
Sou tudo e
não sou nada, sou ser por fazer-se, o agora e o ainda não, parte de mim é divina,
outra parte é humana, pois, mesmo tendo sido resgatado, ainda existo como condenado,
estou preso ao meu próprio corpo, aos seus desejos e paixões, apenas sou livre em
minha consciência. No fundo, sou andarilho em busca da eternidade, existente
caído almejando encontrar a perfeição, humanidade partida, dividida, viajante
em busca de reencontrar a árvore da vida.
Mas agora
virá um novo tempo... Parte de mim vai, outra parte fica. São tantas as partes
nas quais me decompus que não tenho mais como juntá-las novamente. Hoje sou
metade, estou ao meio, sou fragmento de mim mesmo, fui dissolvido como o sal,
dissipei-me, misturei-me ao todo, tornei-me parte da vida, cidadão do mundo,
luz que brilha nas trevas, clarão que rasga a escuridão para atormentar o
tormento.
Agora
deixe-me partir... Chegou a minha hora. Não me diga adeus, não soe clarins, não
me mande recados, não me escreva, nem telefone... Não deixe que a banda toque
canções de despedida, não solte fogos, não bata palmas, não acene... Deixe-me ir incólume, despercebido, deixe-me ir da mesma forma como
cheguei, sem ser notado, percebido, destacado.
É assim que sou
e, provavelmente, é assim que serei. As mudanças, creia-me, produzem-se
lentamente, levam toda uma vida. Há tanto em mim que precisa mudar que seriam
necessárias dezenas de vidas para que fosse eu alguém melhor do que sou. Mas,
como só tenho esta vida para viver, aquilo que sou está se projetando para o
dia em que as minhas incertezas e medos serão confrontados com o “Totalmente
Outro”. Aí, então, verei não mais por espelhos, com os olhos embaçados, mas
conhecerei como sou conhecido, pois o verei face a face, Ele será o meu Deus,
eu serei o Seu filho.
Desculpe por
tudo e por nada. Aceite-me como sou, errante, as vezes perto, as vezes
distante, semeador de sonhos, adorador do sagrado, construtor de altares,
profeta do cotidiano. Sim, aceite-me assim, pois tudo isto “faz parte do meu
“show””, é a forma que tenho de te mostrar que sou humano, que sou o que sou.
Carlos Moreira
Carlos Moreira