A tragédia que desabou sobre as cidades serranas do Rio de Janeiro durante as chuvas desta semana é sem precedentes, mas tem antecedentes. Segundo um dos depoimentos que assisti pela TV, cada vez que chove nesta região duas coisas são certas e estão previstas: deslizamentos e velórios.
Quando a desgraça acontece, todo mundo se sensibiliza. As emissoras de televisão transmitem o “show” ao vivo e a cores; os jornais vociferam o descaso das autoridades; as autoridades atuais culpam seus antecessores por não terem feito nada; as rádios fazem entrevistas com os sobreviventes que nos mostram histórias das mais dramáticas possíveis.
Contudo, creia-me, isso não é motivo de alarde. Não se preocupe tanto. Sei que, talvez, você tenha visto cenas muito fortes, mas, saiba, elas desaparecerão de sua memória em dois ou três dias. Sim, elas sumirão assim como sumiram as imagens inacreditáveis de Angra dos Reis, de Niterói, das cidades do nordeste, todas devastadas por enchentes, arrasadas, com milhares de mortos, cidades varridas do mapa por sinais que a natureza nos dá, cada vez mais freqüentes, de que a Terra agoniza.
É duro de admitir, mas nos tornamos confortavelmente insensíveis. A dor do outro não nos diz nada. Quando muito, citando Sartre, o outro é o inferno. Em poucos dias as TV’s, as Rádios, os Jornais, a Internet, precisarão de novos escândalos, de novas tragédias, de novas revelações, de novas notícias. É assim que a “máquina” gira, é assim que as coisas funcionam, é “assim que caminha a humanidade”... Tudo, tudo mesmo será esquecido...
Você acha que algo será feito? Claro que não! Alguns órgãos farão visitas, a presidente vai sobrevoar as cidades, alguns políticos vão aproveitar a desgraça para se projetarem, os bombeiros, a polícia, as igrejas, outras entidades de auxílio, a cruz vermelha, e muitos, muitos anônimos, como sempre, vão ajudar, vão se doar, vão se arriscar. Mas, no próximo ano, tenha certeza, veremos tudo de novo. Só não temos ainda como prever em qual região e em quais cidades a desgraça acontecerá. Talvez, nos mesmos lugares novamente.
No vídeo postado acima, assisti a uma das cenas mais dramáticas de toda a minha vida. Ela me lembra a frase de Laya: “quando não se tem o que perder deve-se arriscar tudo”. A mulher está ilhada numa casa semi destruída. Ali dentro tem uma história, tem a luta de uma vida, os móveis, os eletrodomésticos, documentos, fotos, poucos bens comprados com sacrifício. Mas a casa está submersa, a maior parte destas coisas já foi levada pela correnteza. O volume de água e a sua força faz com que a mulher suba até chegar ao telhado. Agora já não há mais o que fazer, não tem mais para onde ir.
A câmera mostra a dura realidade. O que lhe sobrou foram apenas duas coisas: a roupa do corpo e o cachorro que ela segura como um filho. Naquele momento, o melhor amigo do cão era o “homem”. Ela o segura como quem segura o único e último bem que lhe restou. Parece determinada a salvá-lo a qualquer custo.
Num ato extremado, num último recurso para livrá-la da morte, vizinhos jogam uma corda para tentar puxá-la para o prédio ao lado. É uma tarefa arriscada. As chances do resgate dar certo são poucas, pois a correnteza é muito forte, o prédio é alto, apenas dois homens estão lá em cima e uma mulher de idade não tem tanta resistência para suportar isto.
A corda é lançada e ela a segura. Ao fundo ouvem-se gritos de desespero. A mulher se joga na correnteza agarrada ao cachorro e tenta salvar-se e salvar o seu bichinho. Mas a força da água impõe-lhe a dura tarefa de escolher entre a sua vida e a vida do animal. Ela agarra a corda com as duas mãos e solta o cachorro que é levado pelo turbilhão descontrolado.
Puxada de forma milagrosa até o teto do prédio, amparada heroicamente por gente que estava no lugar certo na hora certa, ela olha pra trás e não vê mais nada. O “amigo” que tentou salvar a todo custo desaparecera para sempre. Eu tenho um cachorrinho, posso imaginar a sua dor pela sua perda. O que não poderei jamais imaginar é a dor gerada pelas outras tantas perdas deste dia que, para ela, será inesquecível: o dia em que sua vida esteve presa apenas por uma corda.
Eu não sei o nome daquela mulher. Não sei o nome dos homens que a puxaram. Não sei o nome do pequeno cachorrinho. Mas minha alma se entristeceu profundamente pela sua dor e meu coração se compungiu pelo seu sofrimento. Sua coragem em se lançar nas águas para tentar salvar-se me marcarão pelo resto da vida. Daqui de onde estou, posso apenas orar para que ela encontre forças para continuar a viver e reconstruir o que sobrou de sua existência.
A esta mulher, símbolo do desrespeito pela vida, símbolo do descaso das autoridades deste país pelo povo que vive a margem de tudo, símbolo da resistência e da vontade inexplicável de sobreviver, símbolo de dignidade, de humanidade, meus sentimentos, meu respeito e minha reverência pela sua vida, pela sua alma e pela sua dor.
Carlos Moreira