“…e o anunciaram na cidade e nos campos; e
saíram muitos a ver o que era aquilo que tinha acontecido. E foram ter com
Jesus, e viram o endemoninhado, o que tivera a legião, assentado, vestido e em
perfeito juízo, e temeram”. Mc. 5:14-15
Acho curioso quando afirmarmos com bastante convicção as
palavras de Paulo de que “se alguém está
em Cristo é uma nova criatura; as coisas velhas já passaram, tudo se fez novo”.
É que esta é uma frase impactante, chamativa, serve como “marketing” cristão,
mas, em nosso meio, ela é falsa, caricaturada e, porque não dizer,
preconceituosa.
A Igreja “vende” para as pessoas a idéia de que Cristo as
aceitará como são, mas, na realidade, elas sempre serão vistas com as “marcas”
que trouxeram “estampadas” em si mesmas, “marcas” produzidas pela existência, tatuagens
na alma, marcas que não desaparecem facilmente.
“Crente” adora testemunho; alguém falando que fez isso,
aquilo, pintou e bordou é algo que faz um auditório vir abaixo. Quanto mais miséria
houver na vida do sujeito, mas ovacionado ele será. “Glória a Deus!”. Todavia,
mal sabe o pobre coitado que essa “tatuagem” que ele carrega em seu ser jamais será
dissociada de sua narrativa pessoal.
Todo “testemunheiro profissional” é “ex” alguma coisa: ex-viciado,
ex-alcoólatra, ex-homossexual, ex-prostituta, ex-presidiário, ex-maconheiro, creia-me,
a lista não tem fim...
Depois de certo tempo, a pessoa perde sua identidade pessoal
e passa a ser apenas o ex-alguma-coisa. Pior do que isso é o fato do dito cujo
não conseguir compreender sua nova realidade em Cristo, ou seja, ele não discerne
seu novo estado, não se percebe como é, Nova Criação, alguém que recebeu uma
folha em branco para poder escrever uma história nova, ressignificar a vida, e não
um ex-... com uma folha corrida cheia de desgraças e misérias!
O caso do endemoninhado gadareno é bem típico. O cara era
uma fera, um monstro, maluco de pai e mãe, possesso do capeta. Naquela região,
não havia quem não tivesse pavor dele. Todavia, simbolicamente, ele era a projeção
do inconsciente coletivo daquela gente que queria rebelar-se contra a dominação
a qual estava sujeita há vários séculos. Ele era o “mocinho” e o “bandido” ao
mesmo tempo, assustava e encantava, pois ninguém podia detê-lo, subjugá-lo ou
questioná-lo de seus atos.
Quando aquela criatura desencontrada de si mesmo se
encontrou com Jesus, imediatamente “seus” demônios foram expulsos. Mas aquela não
era uma possessão comum, pois o gadareno ao ser questionado sobre quem era, afirmou: "somos muitos", somos uma legião, e fez um pedido: "não nos mande embora
do país".
Aquela potestade espiritual atuava naquela região há,
talvez, milhares de anos. Ela conhecia todos os contornos sócio-histórico-culturais
que estavam inculcados na mente e na alma daquela gente e era justamente isso que
lhe dava subsídios para manipular aquelas vidas.
Naquele exato momento, do ponto de vista histórico, havia
uma legião romana habitando aquelas terras, mas, antes dos romanos, muitas outras
legiões já haviam passado ali. O gadareno era, então, uma espécie
de representação espiritual da dominação histórica que naquelas terras sempre existiu.
Fato é que Jesus esbarrou com aquele “condenado” naquela
manhã e ele, liberto de seus dramas e dores, de seus medos e temores, teve seus
grilhões destroçados pela força do poder libertador do Senhor. O que aconteceu
em seguida, é algo quase arquetípico.
Enquanto Jesus ainda estava naquele lugar, o ex-endemoninhado
– olha o “ex” aí – apareceu de banho tomado, barba feita, cabelo cortado, roupa
limpa, alma pacificada, consciência restaurada, coração de "carne", um novo ser! E
aí, o que aconteceu?
Bem, o povo daquele lugar ao ver o “ex” transformado em “sou”,
pois em Cristo não há passado, mas apenas presente – o bem-aventurado é aquele que
é – decepcionado por não ter mais a sua disposição o espetáculo do “monstro” que a todos punha
medo, pediu educadamente a Jesus que se retirasse dali.
Não sei como seguiu a vida daquele homem. Pelas Escrituras percebo
que ele pediu a Jesus para segui-lo, mas o Senhor o mandou dar testemunho ali
mesmo do que Deus fizera em seu favor.
Creio, todavia, que, das duas uma: ou ele foi viver sua vida
em paz com Deus e com seus semelhantes, ou virou “testemunheiro profissional”,
ou seja, passou a ganhar oferta para sair anunciando que um dia tinha sido um
possesso perigoso, mas, agora, era apenas um ex-endemoninhado. Tatuagem na alma
só sai se a alma for ressignificada em Jesus. Do contrário, as marcas permanecerão por toda a vida.
Carlos Moreira
Carlos Moreira