Eu não era nem nascido quando, em 1963, a marchinha de carnaval “Cabeleira do Zezé” foi composta. Nesta época, no Brasil, o uso masculino do cabelo comprido não era aceito, motivo pelo qual a música foi escrita. A canção fez um sucesso extraordinário, sobretudo pelo bordão do refrão que dizia: “Corta o cabelo dele! Corta o cabelo dele!”.
Pois bem, acredite se quiser, mas esta semana eu ouvi uma história bizarra que me lembrou, dentre outras coisas, a “Cabeleira do Zezé”. Ë mais um “causo evangélico”, dentre tantos outros que tem me assustado. Deixa eu contar...
Um músico amigo, membro de uma igreja protestante tradicional, foi, como de costume, tocar no “culto de oração”. Menino novo, estiloso, cheio de pra-que-isso, trazia na cabeça um penteado maneiro, desses com trunfinha na frente, e o resto todo arrepiado. Demais!
Quando o brother estava afinando o seu instrumento, ávido por fazer aquilo que sente prazer na vida, louvar a Deus com coração agradecido, usando da melhor forma o talento que recebeu, a mulher do pastor se aproximou e lhe disse: “olha aqui, você não vai tocar no culto com este cabelo não, viu! E mais, isto é ordem do pastor! Se quiser participar da reunião, vá lá fora, arrume este penteado, e volte para cá”. O menino ficou assustado; os outros músicos, apavorados, mas ainda é possível se achar pureza e inocência em meio a este mar de hipocrisia e farisaísmo. Assim, o pobre coitado retirou-se, foi ao banheiro, e, mesmo contrariado, desmanchou o topete encapetado! Tá amarrado!
Lembrei dos Gregos... Eles entendiam a “sociedade apolínea” como aquela que reverenciava o padrão de perfeição como algo meramente estético, divinizando a medida da harmonia e da bela aparência, em detrimento dos princípios éticos e morais. Era o culto a forma, ou, conforme Nietzche, o “nada em demasia”. Jesus também tratou da questão do “existir para fora” em, praticamente, todos os seus sermões. Nas conversas e encontros humanos então, nem se fala. No episódio da “figueira sem fruto”, fica evidente sua indignação. Uma exegese simplista do texto nos mostra o cenário sob o qual se deu a “maldição da figueira”.
É domingo e o profeta de Nazaré da Galiléia, passando por Betfagé, se dirige a Jerusalém. Sua entrada na cidade é um acontecimento apoteótico e Ele, já do lado de dentro, se dirige, imediatamente, ao Templo. Numa demonstração de profunda contrariedade, derruba e quebra mesas, cadeiras, tabuleiros, e expulsa cambistas e outros comerciantes que ali se encontravam. O Templo de Herodes, diferentemente do que deveria ser, não era um lugar de sacrifícios pelos pecados e de culto ao Deus de Israel. Pelo contrário, ali existia um ambiente muito mais econômico do que religioso. Ao redor do templo, e mesmo dentro dele, havia toda sorte de comércio. Vendiam-se animais para sacrifício, comidas para ofertas e libações, fazia-se câmbio de dinheiro e outras coisas mais.
Na verdade, o que menos existia ali era culto a Deus. Naquele lugar mítico e, supostamente sagrado, se experimentava apenas o desenrolar de ritos estéreis, que não podiam produzir nenhum significado para o ser e, por isso, não geravam desdobramentos para vida. Era, na verdade, um estelionato da fé, uma hipocrisia da religião, um desdém do sagrado, uma banalização do divino e, certamente por isso, Jesus agiu da forma que agiu. As pessoas tinham aparência de piedade, mas eram vazias de conteúdos. Era, no fundo, uma falsificação barata...
Tão parecido com nossos dias... Passam-se os tempos, mas a falsidade e hipocrisia humana permanecem para sempre. Corta o cabelo dele! Tira o menino do momento de adoração porque o cabelinho do rapaz não está de acordo com o “padrão estético evangélico”. Besteira! Coisa de fariseu! Essa religião produz morte, e não vida! Tira o menino do louvor porque ele não está de conformidade com nosso “modelo de santidade”, como se espiritualidade tivesse a ver com plasticidade performática. Gente, isso é loucura!
Corta o cabelo dele, grita a multidão de “santarados” ensandecida! Muda por fora, pois, nesta dimensão de adoecimento da razão que dá legitimidade a fé, é impossível que o ser mude por dentro. Deixa parecer, mesmo sem ser. Não importa que o coração esteja afundado na amargura, nem que a alma sucumba em meio à intolerância, a maledicência e ao egoísmo. Não importa, nem mesmo, que a consciência cauterize-se pela via da presunção e do julgamento, pois, o que vale mesmo é o “estereotipo abestado” deste ser que existe apenas para si mesmo, não conseguindo discernir nem o outro nem a Deus. Tira a trunfa, grita a mulher do pastor! Faz um novo penteado, diz o “ministro” do sagrado! Este aí, é do capeta!
Fico pensando: o que podemos esperar de uma igreja que prefere a estética cultural de uma religião caduca, as verdades e valores que procedem de um coração pacificado pela graça de Deus em Cristo Jesus? Aonde mais poderemos chegar? Triste, irmãos, não tenho dúvidas, muito triste. Mas, como dizia o velho Chico, “a gente vai levando”...
Sola Gratia!
Carlos Moreira