Todos nós possuímos certos
mecanismos que,
em psicologia, são chamados de mecanismos de defesa. Eles têm por finalidade reduzir manifestações que podem colocar em perigo a integridade do “ego” – uma instância da personalidade definida como o nosso eu mais perceptível.
Quando o indivíduo não consegue lidar com de-terminadas situações, entram em ação esses mecanismos de defesa, processos subconscientes ou mesmo inconscientes que acabam permitindo que a mente encontre uma solução para o conflito que não pôde ser resolvido no nível da consciência.
Esses mecanismos de defesa têm por base a angústia. Quanto maior a angústia, mas fortemente eles atuam. Freud estudou bastante este tema e nos revelou que um dos mais importantes mecanismos é a “projeção”. Trata-se da transferência de atributos pessoais de determinado indivíduo – pensamentos inaceitáveis ou indesejados, por exemplo – para outra pessoa.
O filósofo Ludwig Feuerbach estabeleceu para-lelos entre sua teoria da religião com a ideia de projeção psicológica, e escreveu como uma de suas conclusões que “a concepção de uma divindade antropomórfica trata-se, na verdade, de uma projeção dos medos e ansiedades dos homens”. Foi dentro deste contexto que, em uma de suas frases mais famosas, declarou: “Deus foi criado à imagem e semelhança do homem”.
Posto isso, base mínima para as argumentações que se seguem, quero especular sobre um fenômeno que tenho presenciado sistematicamente ouvindo pessoas: a atribuição ou transferência de culpa de atitudes dos indivíduos para a figura do “diabo”.
Em nossos dias, o “diabo” é o grande culpado por boa parte dos problemas que enfrentamos e este “fenômeno”, pasmem, carrega em si até certo grau de espiritualidade, pois, afinal de contas, o sujeito está sendo “atacado por satanás”! O diabo na igreja é criatura das mais conhecidas e reverenciadas. Não
raro, ganha status de ator hollywoodiano, pop star, gospel, chega a dividir com Deus boa parte das citações em um culto ou sermão.
Até hoje, todavia, ninguém havia avaliado os supostos estragos que eventuais acusações e transferências causaram na alma do “tinhoso”. De tanto ser culpado por coisas que jamais realizou, atos que não cometeu e situações das quais não participou, o diabo começou a desenvolver certas deformidades comportamentais.
No começo era apenas um leve sentimento de culpa, mas a coisa se aprofundou e começou a virar disfunção de autoimagem. Em seguida, baixa estima, depressão e, por fim, síndrome do pânico!
Apavorado com a situação e de forma recorrente, sendo acusado pelos crentes como culpado de tudo que lhes sobrevém, o diabo resolveu, como recurso último, já num grau de desespero extremo, ir ao analista. O trecho abaixo é parte da anamnese realizada pelo psicanalista no primeiro contato que teve com o “rabudo”.
Terapeuta - Vamos lá, deixe essa timidez de lado, pode falar. O que lhe incomoda?
Diabo – Doutor, eu estou me sentindo muito mal.
Tenho ânsia de vômito, sudorese, taquicardia e, às vezes, pânico!
Terapeuta – Sei... Mas o que você acha que provoca tais sintomas?
Diabo - Bem, doutor, eu estou carregando um far-do muito pesado. Os crentes colocam a culpa em mim por tudo o que lhes acontece. Isso tem gerado um constante estado de angústia. O senhor tem ideia do que é ser acusado de algo que, em absoluto, não realizou?
Terapeuta - Não. Mas isso não é importante, pois estamos falando de você, não de mim. Dê-me um exemplo para que eu possa entender melhor.
Diabo - O cara é um safado; vive no trambique... nota fria, caixa dois e tudo o mais. Um dia, chega a fiscalização e o cretino afirma: “Isso é coisa do diabo!”. Quer mais? O sujeito não ora, não lê a Bíblia, não age conforme o que crê, e aí diz que sua falta de disciplina é “coisa do diabo!”. É pouco, doutor?! Vem um outro... Ele não cria os filhos com valores nem princípios. Em casa, é o pior exemplo possível. Contudo, se os pirralhos se desencaminham na vida, assevera: “Isso é coisa do diabo”!
Terapeuta - Realmente, estou vendo que seu caso é mesmo sério!
Diabo – É, doutor, mas não fica só nisso não... Observe: o sujeito toma uma decisão sem pensar, irrefletidamente. Mas o que ele diz quando bate com a cara na parede: “Isso é coisa do diabo”! Ainda tem mais... Se alguém possui um temperamento descontrolado, iracundo, provocador, toda vez que se desentende com alguém conclui de forma absurda: “Isso é coisa do diabo”! Achou pouco, doutor? E quando um deles se endivida, desorganiza-se financeiramente por não
conseguir segurar o cartão na carteira, sabe o que diz? Que deu uma “brecha para o diabo!”.
Terapeuta - Cidadão, a situação é mesmo complicada...
Diabo – Mas não para aí não... O cara vem cheio de paranoias, uma família pra lá de louca, alma desestruturada, traumas, medos, e diz que a “doideira” dele é “coisa do diabo”. Imagina, doutor?! O sujeito é mal-amado, mal resolvido, carente, e tudo é “coisa do diabo?!”. Se o cara mergulha no vício, o que eu ouço? “Isso é coisa do diabo”. Se vive na mentira, diz que o responsável sou eu, afinal, eu sou o pai da mentira! A desgraça torna-se ainda maior porque eu não ganho nada com isso! Falam o tempo todo no meu nome, mas crédito que é bom, nada! Assim não tem quem aguente!
Terapeuta - Bem meu “amigo”, seu tempo, infeliz-mente, acabou. Na verdade, estou achando que você está muito ansioso. Vou ter de lhe receitar um ansiolítico!
Diabo - Para que serve?
Terapeuta - Para controlar sua ansiedade.
Diabo - Você está louco, doutor?! Eu vivo de gerar ansiedade nos outros e você quer tirar a minha? Doutor, creia-me, estou com muito medo de não ter mais nada o que fazer contra a existência humana, tornar-me apenas alegoria de história de criança!
Terapeuta - Mas seu diabo, como é que o senhor ganha a vida?
Diabo - Bem, eu vivo de gerar medo, culpa, angústia e ansiedade nas pessoas. Eu mato seus sonhos, roubo suas sensações, destruo suas almas. Na verdade, sou um grande coreógrafo! Crio cenários para as pessoas atuarem na peça, mas elas é que fazem as escolhas e desempenham os papéis.
A sessão termina. O analista diz: “Bem, vá até a farmácia, compre o medicamento e me ligue! Vamos avançando no tratamento...”. O diabo se despede, sai cabisbaixo, arrastando o rabo, deprimido, mas dirige-se à drogaria mais próxima.
No consultório, toca o telefone na sala do médico. É a secretária. O doutor diz: “Mande entrar o próximo”. A porta se abre e entra o outro paciente... É um crente. O doutor pergunta:
Terapeuta - Bem, meu amigo, qual é o seu problema?
Crente - Doutor, estou meio sem jeito... É que eu dei uma “brecha”, sabe? Uma escapadela! Na verdade, traí minha mulher.
Terapeuta - E quando foi isso?
Crente - Ah doutor, tem sido algo constante. Antes de vir para cá, por exemplo, aconteceu.
Terapeuta – Mas meu amigo, o que você acha que está acontecendo com sua vida afetiva?
Crente - Não sei, doutor! Tenho pensado muito sobre esse assunto e cheguei a uma conclusão: “Isso é coisa do diabo!”.
Nessa hora, não aguentando o absurdo ali proferido, o analista, levantando-se da cadeira exaltado, esbraveja: “Deixe de ser safado! Que diabo coisa nenhuma! O diabo acabou de sair daqui ainda agora, deprimido, mais pra baixo do que rabo de elefante, e você me vem com este papo da carochinha! Tome vergonha na sua cara e assuma a responsabilidade por seus atos...”.
Agora, durma o diabo com um barulho desse...
Carlos Moreira
em psicologia, são chamados de mecanismos de defesa. Eles têm por finalidade reduzir manifestações que podem colocar em perigo a integridade do “ego” – uma instância da personalidade definida como o nosso eu mais perceptível.
Quando o indivíduo não consegue lidar com de-terminadas situações, entram em ação esses mecanismos de defesa, processos subconscientes ou mesmo inconscientes que acabam permitindo que a mente encontre uma solução para o conflito que não pôde ser resolvido no nível da consciência.
Esses mecanismos de defesa têm por base a angústia. Quanto maior a angústia, mas fortemente eles atuam. Freud estudou bastante este tema e nos revelou que um dos mais importantes mecanismos é a “projeção”. Trata-se da transferência de atributos pessoais de determinado indivíduo – pensamentos inaceitáveis ou indesejados, por exemplo – para outra pessoa.
O filósofo Ludwig Feuerbach estabeleceu para-lelos entre sua teoria da religião com a ideia de projeção psicológica, e escreveu como uma de suas conclusões que “a concepção de uma divindade antropomórfica trata-se, na verdade, de uma projeção dos medos e ansiedades dos homens”. Foi dentro deste contexto que, em uma de suas frases mais famosas, declarou: “Deus foi criado à imagem e semelhança do homem”.
Posto isso, base mínima para as argumentações que se seguem, quero especular sobre um fenômeno que tenho presenciado sistematicamente ouvindo pessoas: a atribuição ou transferência de culpa de atitudes dos indivíduos para a figura do “diabo”.
Em nossos dias, o “diabo” é o grande culpado por boa parte dos problemas que enfrentamos e este “fenômeno”, pasmem, carrega em si até certo grau de espiritualidade, pois, afinal de contas, o sujeito está sendo “atacado por satanás”! O diabo na igreja é criatura das mais conhecidas e reverenciadas. Não
raro, ganha status de ator hollywoodiano, pop star, gospel, chega a dividir com Deus boa parte das citações em um culto ou sermão.
Até hoje, todavia, ninguém havia avaliado os supostos estragos que eventuais acusações e transferências causaram na alma do “tinhoso”. De tanto ser culpado por coisas que jamais realizou, atos que não cometeu e situações das quais não participou, o diabo começou a desenvolver certas deformidades comportamentais.
No começo era apenas um leve sentimento de culpa, mas a coisa se aprofundou e começou a virar disfunção de autoimagem. Em seguida, baixa estima, depressão e, por fim, síndrome do pânico!
Apavorado com a situação e de forma recorrente, sendo acusado pelos crentes como culpado de tudo que lhes sobrevém, o diabo resolveu, como recurso último, já num grau de desespero extremo, ir ao analista. O trecho abaixo é parte da anamnese realizada pelo psicanalista no primeiro contato que teve com o “rabudo”.
Terapeuta - Vamos lá, deixe essa timidez de lado, pode falar. O que lhe incomoda?
Diabo – Doutor, eu estou me sentindo muito mal.
Tenho ânsia de vômito, sudorese, taquicardia e, às vezes, pânico!
Terapeuta – Sei... Mas o que você acha que provoca tais sintomas?
Diabo - Bem, doutor, eu estou carregando um far-do muito pesado. Os crentes colocam a culpa em mim por tudo o que lhes acontece. Isso tem gerado um constante estado de angústia. O senhor tem ideia do que é ser acusado de algo que, em absoluto, não realizou?
Terapeuta - Não. Mas isso não é importante, pois estamos falando de você, não de mim. Dê-me um exemplo para que eu possa entender melhor.
Diabo - O cara é um safado; vive no trambique... nota fria, caixa dois e tudo o mais. Um dia, chega a fiscalização e o cretino afirma: “Isso é coisa do diabo!”. Quer mais? O sujeito não ora, não lê a Bíblia, não age conforme o que crê, e aí diz que sua falta de disciplina é “coisa do diabo!”. É pouco, doutor?! Vem um outro... Ele não cria os filhos com valores nem princípios. Em casa, é o pior exemplo possível. Contudo, se os pirralhos se desencaminham na vida, assevera: “Isso é coisa do diabo”!
Terapeuta - Realmente, estou vendo que seu caso é mesmo sério!
Diabo – É, doutor, mas não fica só nisso não... Observe: o sujeito toma uma decisão sem pensar, irrefletidamente. Mas o que ele diz quando bate com a cara na parede: “Isso é coisa do diabo”! Ainda tem mais... Se alguém possui um temperamento descontrolado, iracundo, provocador, toda vez que se desentende com alguém conclui de forma absurda: “Isso é coisa do diabo”! Achou pouco, doutor? E quando um deles se endivida, desorganiza-se financeiramente por não
conseguir segurar o cartão na carteira, sabe o que diz? Que deu uma “brecha para o diabo!”.
Terapeuta - Cidadão, a situação é mesmo complicada...
Diabo – Mas não para aí não... O cara vem cheio de paranoias, uma família pra lá de louca, alma desestruturada, traumas, medos, e diz que a “doideira” dele é “coisa do diabo”. Imagina, doutor?! O sujeito é mal-amado, mal resolvido, carente, e tudo é “coisa do diabo?!”. Se o cara mergulha no vício, o que eu ouço? “Isso é coisa do diabo”. Se vive na mentira, diz que o responsável sou eu, afinal, eu sou o pai da mentira! A desgraça torna-se ainda maior porque eu não ganho nada com isso! Falam o tempo todo no meu nome, mas crédito que é bom, nada! Assim não tem quem aguente!
Terapeuta - Bem meu “amigo”, seu tempo, infeliz-mente, acabou. Na verdade, estou achando que você está muito ansioso. Vou ter de lhe receitar um ansiolítico!
Diabo - Para que serve?
Terapeuta - Para controlar sua ansiedade.
Diabo - Você está louco, doutor?! Eu vivo de gerar ansiedade nos outros e você quer tirar a minha? Doutor, creia-me, estou com muito medo de não ter mais nada o que fazer contra a existência humana, tornar-me apenas alegoria de história de criança!
Terapeuta - Mas seu diabo, como é que o senhor ganha a vida?
Diabo - Bem, eu vivo de gerar medo, culpa, angústia e ansiedade nas pessoas. Eu mato seus sonhos, roubo suas sensações, destruo suas almas. Na verdade, sou um grande coreógrafo! Crio cenários para as pessoas atuarem na peça, mas elas é que fazem as escolhas e desempenham os papéis.
A sessão termina. O analista diz: “Bem, vá até a farmácia, compre o medicamento e me ligue! Vamos avançando no tratamento...”. O diabo se despede, sai cabisbaixo, arrastando o rabo, deprimido, mas dirige-se à drogaria mais próxima.
No consultório, toca o telefone na sala do médico. É a secretária. O doutor diz: “Mande entrar o próximo”. A porta se abre e entra o outro paciente... É um crente. O doutor pergunta:
Terapeuta - Bem, meu amigo, qual é o seu problema?
Crente - Doutor, estou meio sem jeito... É que eu dei uma “brecha”, sabe? Uma escapadela! Na verdade, traí minha mulher.
Terapeuta - E quando foi isso?
Crente - Ah doutor, tem sido algo constante. Antes de vir para cá, por exemplo, aconteceu.
Terapeuta – Mas meu amigo, o que você acha que está acontecendo com sua vida afetiva?
Crente - Não sei, doutor! Tenho pensado muito sobre esse assunto e cheguei a uma conclusão: “Isso é coisa do diabo!”.
Nessa hora, não aguentando o absurdo ali proferido, o analista, levantando-se da cadeira exaltado, esbraveja: “Deixe de ser safado! Que diabo coisa nenhuma! O diabo acabou de sair daqui ainda agora, deprimido, mais pra baixo do que rabo de elefante, e você me vem com este papo da carochinha! Tome vergonha na sua cara e assuma a responsabilidade por seus atos...”.
Agora, durma o diabo com um barulho desse...
Carlos Moreira