Certa vez me fizeram acreditar que o homem havia sido feito do barro. Mas que nada! Eu sei que o homem veio da borracha. Ele nasce tão flexível, e que incrível, pode até retorcer-se. Não fosse de borracha, ainda nos primeiros anos, sucumbiria. Quedas frequentes, insistentes, o matariam sem constrangimentos. Sim, é de borracha, modela e se adapta, se constrói, põe-se de pé e diz: eu sou!
Os dias, todavia, com apetite insano, avançam, devoram as
folhas dos calendários... E eis agora o homem! Passadas fartas em calçadas plácidas
ele avança, lindo. Tudo é delícia quando se é jovem. Nesta estação o homem é de
aço. Imagina ser inquebrável, invencível. Torna-se duro, impermeável a dor e ao
amor. Pensa que é eterno, corre todos os riscos, risca rastros no chão da vida,
faz mapas, corta mares, adentra infinitos. Mas tudo isso também passa...
Aí o homem se torna homem, se converte em vidro, fica mais
refinado, translúcido, misterioso. Homem de vidro bem sabe dos seus limites,
entende que pode facilmente se quebrar, cair e não mais ser. Sendo de vidro,
reflete a luz, rouba cenas, mas aparece apenas, sem protagonizar, torna-se
caleidoscópio, sintetiza cores, faz desenhos no imaginário. O homem de vidro
domina pensamentos, controla sentimentos, rebusca grifos nas páginas do livro
dos seus dias, une letras que namoram palavras, palavras que acabam parindo
frases e textos. Fica o dito e tudo o
mais escrito, quase eterno, quase...
Vem então o fim, apressado, fora de tempo. O homem sabe que
sua beleza já se foi e que as certezas se perderam quais folhas de outono dançando
na porta do terraço vazio. Em seu epílogo entre os viventes, o homem se torna
de barro. Mesmo em sua aparente fragilidade, o barro possui lindeza por demais.
Pode ser moldado, refeito, reinventado. Homem de barro sabe que a vida é
silêncio e solidão, é manufatura diária para, ao final do dia, os pés poderem
descansar de tantas andanças, de tanto lamento.
Na velhice o homem é de barro, sim senhor, vai se
esfarelando pelo caminho, deixando partes de si no solo como semeadura da vida,
é, ao mesmo tempo, semente e adubo. E só aí, quando homem e terra começam a se
fundir, é que o maravilhoso mistério de ser se desvela. Sim, quando os ventos
sopram sobre a face enrugada e fazem os poucos fios de cabelos brancos se
agitarem sobre olhos esmaecidos, quando o solo clama pela alma e chama o corpo
para repousar na cama eterna, o homem percebe que existir é mais que viver, é
ser e sentir, é encontrar o sentido que há em morrer para, finalmente, poder nascer...
Carlos Moreira
Carlos Moreira