“Não olhava para trás, porque olhar para trás era uma maneira de ficar num pedaço qualquer para partir incompleto”. Caio F. Abreu
Há duas coisas que eu julgo importantes na vida: estar sempre com os olhos no horizonte e manter os pés plantados no chão. Aprendi que olhar para o infinito mantém viva minha necessidade de sonhar, de me projetar para o inusitado em busca do novo.
Mas foi depois de algum tempo que entendi que a existência só se torna real quando as marcas de nossos pés ficam esculpidas no asfalto de nossos dias. Sim, toda existência deixa rastros, toda história tem suas trilhas, são os caminhos feitos em nós – uns construídos para dentro, em busca de quem somos, outros para fora, almejando a materialização daquilo que seremos.
No meu pragmatismo, elaborei uma dialética sobre essa questão. Ela afirma que eu devo sonhar, mas sem muita divagação; acreditar, mas sem me perder na ilusão; almejar, mas apenas aquilo que pode ser alcançado; desejar, mas de preferência o que possa fazer de mim alguém melhor. Sim, entendi que devo dar asas aos meus olhos, para que eles voem como os pássaros, mas raízes aos meus pés, de tal forma que escavem o solo e se fixem na terra quais árvores, assim terei a possibilidade de ser livre para pensar e firme para realizar.
Algo que me ajudou a formular estas percepções foi o que sucedeu com Ló no texto descrito em Gn. 19:17. Observe a citação: “...um deles disse a Ló: Fuja por amor à vida! Não olhe para trás e não pare em lugar nenhum...”.
Ló era parente de Abraão e havia saído com ele de Ur dos Caldeus na saga de encontrar Canaã, a Terra Prometida. Depois de certo tempo, eles se separaram, e Ló veio a habitar em Sodoma, uma das cinco cidades-estados do Vale de Sidim, no Mar Morto, um lugar descrito como paradisíaco.
Naquele local, Ló, sua esposa e mais duas filhas tentaram se estabelecer. Mas aquela metrópole, em especial, tinha uma série de problemas, conforme o relato de Ezequiel 16, onde Sodoma é descrita não apenas como um lugar onde a imoralidade era prevalente, mas também como um local onde imperava a ganância, a ociosidade, a arrogância e a avareza, o que caracterizava, dentre outras coisas, um desprezo pela vida.
Aparentemente, Ló tentou alertar as pessoas sobre seu modo frívolo de viver, conforme o capítulo 19 de Gênesis, onde vemos a população afirmando que ele, como um forasteiro, não podia ali se constituir juiz. Fato é, todavia, que tornou-se impossível conviver naquela sociedade sem se impregnar com seus valores e práticas. Por isso, é muito provável que parte da “cultura de Sodoma” tenha se instalado não só na consciência de Ló, mas também em sua alma.
Por aqueles dias, dois seres espirituais visitaram Sodoma, e avisaram a Ló de que a cidade seria destruída, tamanha era a sua perversidade. O relato está descrito no texto que citei acima. A degradação social e moral de Sodoma havia chegado a um ponto tal que ela acabou sendo entregue a sua própria sorte, tendo sido destruída por uma “chuva de fogo e enxofre”, conforme o relato bíblico, talvez algo ligado a uma erupção vulcânica.
Curioso, entretanto, é o fato de Ló, mesmo tendo sido avisado de tudo o que sucederia, ainda demonstrar tanta dificuldade em sair da cidade. Bem dizer, isso só aconteceu porque os seres espirituais, literalmente, o arrastaram para fora com a família.
Há três aspectos que julgo interessantes no texto e que me remetem ao modo como as pessoas vivem em nosso tempo. O primeiro está na expressão: “Fuja por amor à vida”. Ora, a exclamação denota a dramaticidade da situação. Estava claro que aquele homem estava indeciso, inseguro, que havia amarras existenciais que o prendiam àquele lugar.
A questão, todavia, era uma só: como deixar para trás casa, mobília, trabalho e tudo o que a vida lhes proporcionou construir e acumular no período em que eles ali habitaram? Era uma cisão traumática, abrupta, não obstante, necessária.
Não raro encontro indivíduos na mesma situação. Eles estão presos a coisas, lugares, relações, patrimônio, “heranças” das mais diversas. Para se tornarem livres, precisam cindir com o passado, colocar o pé na estrada e ir, mas ficam relutando e, por vezes, “morrem em Sodoma”, presos a estacas existenciais que não podem ser removidas do chão onde a vida foi plantada.
Em segundo lugar, aparece a citação: “não olhe para trás”. A expressão tem duas conotações. Em primeiro lugar, tudo o que havia ficado ali estava por ser destruído e era mais do que certo que ver o fruto de uma vida virando “cinzas” não seria algo bom para a alma. Em segundo lugar, a proposta agora era romper com tudo e lançar-se pela fé na certeza de que Deus proveria o que fosse necessário para o restabelecimento da vida.
Desgraçadamente, contudo, tenho visto que em tais circunstâncias já se instaurou em nós uma espécie de vício psicológico que nos aprisiona ao passado e nos faz sempre olhar para trás e lamentar. É uma nostalgia pelo que já se foi, uma melancolia masoquista que para nada serve a não ser gerar feridas no coração e tristeza no ser.
Por último, aparece mais um conselho: “Não pare em lugar nenhum”. Esse era mais um desafio: caminhar até que os pés pudessem, enfim, descansar de toda fadiga da vida. Há muitas coisas atrativas quando se está caminhando, muitas das quais roubarão nosso objetivo de chegar a um lugar seguro. Nesses casos, o melhor a fazer é não perder o foco, ir até onde os campos sejam férteis e as águas ofereçam descanso.
Há situações em que não adianta apenas partir, é preciso ir o mais longe possível, afastar-se em definitivo, romper totalmente. Sim, só se deve parar quando o “lugar” for apropriado, quando as circunstâncias apontarem que ali se pode lançar alicerces, criar raiz, fincar novamente a vida no solo que permitirá que sementes sejam plantadas para que frutos sejam colhidos, frutos de graça e misericórdia.
Em minhas andanças pela vida, infelizmente, tenho visto muita gente presa à “Sodoma”. Alguns tentaram fugir do lugar onde existencialmente estavam, mas não foram longe o suficiente para reconstruir uma nova história. Há outros que, mesmo seguindo, acabaram olhando para trás e, desta forma, não conseguiram chegar ao local almejado, ficaram presos às lembranças do que foi vivido, ao que se instalou no ser como consciência prevalente, como sentimento pulsante e vício psicológico.
O que sei é que a “poeira de Sodoma” é capaz de adulterar a consciência e tornar inflexível o coração. Ela paralisa a existência, uma vez que nos torna inamovíveis para alcançar novos objetivos. Quem respira o “pó de Sodoma” não consegue discernir o todo, acaba asfixiado por sua própria cobiça, cego em meio a infrutíferas cogitações.
Carlos Moreira
Desgraçadamente, contudo, tenho visto que em tais circunstâncias já se instaurou em nós uma espécie de vício psicológico que nos aprisiona ao passado e nos faz sempre olhar para trás e lamentar. É uma nostalgia pelo que já se foi, uma melancolia masoquista que para nada serve a não ser gerar feridas no coração e tristeza no ser.
Por último, aparece mais um conselho: “Não pare em lugar nenhum”. Esse era mais um desafio: caminhar até que os pés pudessem, enfim, descansar de toda fadiga da vida. Há muitas coisas atrativas quando se está caminhando, muitas das quais roubarão nosso objetivo de chegar a um lugar seguro. Nesses casos, o melhor a fazer é não perder o foco, ir até onde os campos sejam férteis e as águas ofereçam descanso.
Há situações em que não adianta apenas partir, é preciso ir o mais longe possível, afastar-se em definitivo, romper totalmente. Sim, só se deve parar quando o “lugar” for apropriado, quando as circunstâncias apontarem que ali se pode lançar alicerces, criar raiz, fincar novamente a vida no solo que permitirá que sementes sejam plantadas para que frutos sejam colhidos, frutos de graça e misericórdia.
Em minhas andanças pela vida, infelizmente, tenho visto muita gente presa à “Sodoma”. Alguns tentaram fugir do lugar onde existencialmente estavam, mas não foram longe o suficiente para reconstruir uma nova história. Há outros que, mesmo seguindo, acabaram olhando para trás e, desta forma, não conseguiram chegar ao local almejado, ficaram presos às lembranças do que foi vivido, ao que se instalou no ser como consciência prevalente, como sentimento pulsante e vício psicológico.
O que sei é que a “poeira de Sodoma” é capaz de adulterar a consciência e tornar inflexível o coração. Ela paralisa a existência, uma vez que nos torna inamovíveis para alcançar novos objetivos. Quem respira o “pó de Sodoma” não consegue discernir o todo, acaba asfixiado por sua própria cobiça, cego em meio a infrutíferas cogitações.
Carlos Moreira