A polêmica da peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”,
chegou aqui em Pernambuco, mais especificamente, no “Festival de Inverno” da
charmosa cidade de Garanhuns.
O imbróglio começou antes mesmo da apresentação, com ordem e
contra-ordem da Justiça, ora proibindo, ora liberando o evento. O último ato da
prosopopeia se deu na sexta-feira - 27/07, quando o desembargador Roberto da
Silva Maia, a pedido da Ordem dos Pastores Evangélicos de Garanhuns, proibiu a
exibição da peça. Na sequência, todavia, o presidente do Tribunal de Justiça de
Pernambuco, desembargador Cândido Saraiva, manteve a decisão inicial de que ela
poderia ser apresentada ao público.
O espetáculo, que originalmente versa sobre um monólogo escrito
pela dramaturga transexual escocesa Jo Clifford, passou a ser executado no
Brasil pela transexual Renata de Carvalho. Nele Jesus é um travesti e, logo na
primeira cena, de salto alto e vestido, se apresenta afirmando: "Vocês não
imaginavam me encontrar aqui, vocês imaginavam me encontrar na igreja, mas na
igreja não posso entrar". Confesso: já me apaixonei!
O roteiro interpretativo, numa releitura contemporânea, segue
visitando parábolas e ensinamentos de Jesus onde é possível, por exemplo,
ouvir: “Nunca disse: cuidado com os homossexuais, transexuais e gays. Eu nunca
disse isso, eu disse: cuidado com os autoindulgentes e os hipócritas, cuidado
com aqueles que se imaginam virtuosos e proferem julgamento, aqueles que
condenam os outros e se consideram bons. Seus lábios são cheios de bondade, mas
seus corações estão plenos de ódio”. Vibrei! Na esmagadora maioria das igrejas
cristãs deste país algo tão sólido, que aponta inexoravelmente para a
perspectiva do Evangelho, é dito com tanta determinação e verdade.
Bem, diante de tudo o que aconteceu, a primeira questão que
desejo pontuar, apenas para lembrar-nos, é que o Estado Brasileiro é laico, ou
seja, não arbitra nada no âmbito religioso, dando liberdade às pessoas para
expressarem suas crenças como bem entenderem. Assim, a censura, que ocorreu em
várias cidades do país, jamais poderia ser uma questão da justiça, uma vez que
houve clara tendenciosidade religiosa para que a sanção fosse estabelecida.
Afirmar que a peça “expõe símbolos religiosos ao ridículo” é, no mínimo, uma
forçação de barra sem precedentes.
A segunda questão que me chamou à atenção é que o problema real
está no fato da atriz que interpreta o papel de Jesus ser transexual. Creia:
permitir algo desta monta é blasfêmia contra “Deus” e contra o cristianismo.
Ora, Jesus já foi interpretado por incontáveis atores, em peças, filmes,
musicais e, salvo em casos raros, como no polêmico “A Última Tentação de
Cristo”, de Nikos Kazantzakis, com interpretação irretocável de Wilem Dafoe,
não se viu qualquer tipo de manifestação ou censura. Aliás, aqui mesmo em
Pernambuco, numa jogada marqueteira sensacional, a “Paixão de Cristo”, maior
espetáculo ao ar livre do mundo, realizado na Semana Santa em Nova Jerusalém,
faz todo ano um rodízio de Jesus com atores globais que provocam o maior
frisson entre a mulherada. Lembro, num desses anos, que o Fábio Assunção, que
não carrega reputação que corresponda aos critérios éticos e morais da “Santa
Igreja”, interpretou o papel com a desenvoltura que lhe é peculiar. Amigos que
foram ao espetáculo, para ver esse Jesus de olhos azuis e cabelos loiros
sedosos, relataram o constrangimento de assistir cenas dos Evangelhos tendo ao
fundo assobios, histeria e gritos de “gostoso”. Não lembro, todavia, de nenhum
movimento de religiosos ou do poder público para proibir nada. Também, pudera,
ali rola muita, muita grana mesmo...
Finalmente, nesta simples reflexão, lhe faço uma pergunta
provocativa: “Você acha mesmo que Jesus está preocupado com o fato de uma
transexual realizar uma peça teatral com uma releitura de suas falas, ainda que
possamos enquadrar, aqui e ali, imprecisões quanto ao que está dito nos
Evangelhos?”. Ora, meu amigo, Jesus entrou na casa de Simão, o fariseu, homem
dito de Deus, dado aos ascetismos de Israel, ao cerimonialismo religioso vazio,
as liturgias de purgação de pecados ineficazes, a reverência a forma e o culto
a mecanicidade de um tipo de fé que nada pode produzir ao coração e a
consciência, e ali teve seus pés lavados por uma mulher da vida, puta mesmo,
que não se conteve e em uma explosão de amor, com suas próprias lágrimas,
ungiu-lhe diante de todos. O religioso, escandalizado por saber que tipo de
pecado ela carregava, fez sua censura pública e com gestos expunha sua
reprovação. Jesus, todavia, repreendeu-lhe, e asseverando sobre a verdadeira
espiritualidade, aplicou-lhe uma lição que serve, também, para mim e para você.
Você acha que esse Jesus, que não é nutella, mas raiz, ia ficar chocadinho e
ruborizado porque uma atriz trans está fazendo uma encenação dele numa
apresentação cultural? Jesus não é travesti, ele sabe de si, ele é Deus, mas
você tem que defender ele porque, quem sabe, o seu "Jesus" acabe
entrando em crise com tudo isso. Ah meu Pai! Sabe de nada, inocente...
Concluo, portanto, pedindo
que o estado, a justiça, e os religiosos deixem a Peça em cartaz, pois o
próprio Jesus afirmou “Quem não é contra mim, é por mim”. Jesus
"Traveco"? Gente do céu, é apenas uma peça, vocês não conseguem
abstrair nada, tudo tem que ser a ferro e fogo. Num tempo onde os profetas
estão mortos, Deus pode levantar transexuais para nos jogar na cara valores que
temos negligenciado, como a tolerância, o respeito e o amor. Se a igreja pensa
que tem o “copyright” de Jesus, que é dona da “marca”, que só ela pode falar em
nome dele, é bom repensar seus conceitos, pois, tempos atrás, houve uma moçada
lá em Israel que pensava a mesma coisa, e o final deles, como sabemos, foi
trágico...
Carlos Moreira