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23 novembro 2011

Isso é de Deus ou do diabo?



Talvez daqui a alguns anos eu escreva um livro só com as “pérolas” que ouço semanalmente conversando com as pessoas. Já pensei até no título: “Confissões & Confusões”.

Uma das atividades mais desgastantes da vida de um ministro do Evangelho é o aconselhamento. Digo isso porque é impossível ouvir os dramas e as dores das pessoas sem, de alguma forma, se envolver com elas.

Mas a escuta terapêutica vem desaparecendo, gradativamente, das funções dos pastores ordenados e isso, para mim, tem um único motivo: escutar pessoas requer um investimento grande de tempo e, “desgraçadamente”, não gera dinheiro. Por isso, muitos pastores têm optado em fazer um curso superior de psicologia, pois aí podem cobrar pelo atendimento profissional.

Pois bem, dia desses me vi diante de uma situação muito frequente quando ouço gente: a suposta obrigação de ter de dizer ao indivíduo se ele deve ou não fazer algo. Concretamente, a questão me foi posta da seguinte forma: “Pastor, depois de ter ouvido tudo o que eu disse, me responda sinceramente: Isso é de Deus ou do Diabo?”. “Bem”, respondi, “nem de um nem do outro, muito pelo contrário!”.

E prossegui: “Meu amigo, eu não sou feiticeiro, nem adivinho, não possuo bola de cristal, não jogo búzios, nem leio cartas. Portanto, não estou aqui para lhe dizer como será o amanhã, nem muito menos para lhe dar uma “profetada”. Posso sim lhe ajudar a refletir sobre alguns cenários possíveis, e isso a partir de suas escolhas. Mas saiba: a decisão final será sempre sua e somente sua”.    

E continuei: “Outra coisa que preciso lhe esclarecer é que nem tudo na vida se resume a ser de Deus ou do Diabo. Na verdade, a maioria das coisas é “do homem”, ou seja, ganha materialidade a partir da projeção das “sombras” que existem em nós, pois, segundo Tiago: “Cobiçais, e nada tendes; matais, e sois invejosos, e nada podeis alcançar... pedis, e não recebeis, porque pedis mal, para gastardes em vossos deleites”.

De forma objetiva, o que quero aqui esclarecer é que a tradição cristã, infelizmente, está impregnada desse tipo de pensamento, que nada mais é do que o dualismo grego. Foi a partir da influência dessa filosofia que a existência acabou sendo reduzida a algo binário: zero ou um. Em outras palavras, tudo passou a ser ou de Deus ou do Diabo!

O dualismo grego é uma espécie de dialética hegeliana sem a síntese, ou seja, ele só tem tese e antítese. Separa o físico do metafísico, o sensível do espiritual, o bem do mal, a unidade da pluralidade.

Muitas dessas ideias estão centradas em Platão, pois, para o filósofo, o mundo estaria dividido em duas esferas: a superior e a inferior. O nível mais elevado consistia das ideias eternas. O nível mais baixo era formado pela “matéria”. Esta, por sua vez, era temporal, física e imperfeita. 

É por este motivo, por exemplo, que Platão localiza o trabalho no reino inferior. Para ele, existia um reino espiritual separado e distinto do reino físico. Por isso, quanto mais espiritual a pessoa fosse, me-nos ligada à matéria estaria. No dualismo grego, o ambiente profissional era “carnal”, pois tratava das “coisas terrenas”, tais como o dinheiro.

Agora uma pergunta: você já viu esse tipo de “pensamento” presente na igreja? Mais é claro que sim! O que você talvez não saiba é sua origem. Vamos mergulhar na história?  

A partir do século IV, a cosmovisão cristã começou a sofrer forte influência do neoplatonismo, desenvolvido por Plotino. Tratava-se de uma doutrina que preconizava, dentre outras coisas, o abandono do mundo material para que o espírito pudesse unir-se a uma “entidade superior”.

Pois bem, a porta de entrada do neoplatonismo no pensamento cristão se deu por meio de um de seus mais ilustres representantes: Santo Agostinho. O bispo de Hipona foi, talvez, o principal responsável pela adaptação das ideias de Platão, de tal forma que elas pudessem servir como argumentação filosófica para a apologética da fé cristã.

Um dos desdobramentos desta tradição, durante a Idade Média, impunha aos clérigos a necessidade de atestar sua espiritualidade pelos votos de pobreza, de castidade e de obediência. Era a negação dos elementos do reino inferior com vistas a alcançar uma espiritualidade elevada, ou seja, era a ataraxia estoica grega simbiotizada com a fé judaico-cristã.  

Agora quero lhe fazer uma proposta: olhe para a vida com estas novas lentes e, talvez, você comece a perceber que o dualismo não tem nada a ver com o Evangelho. Essa separação de mundo espiritual do mundo material é pagã, e não cristã. É dela que surgem conceitos tais como: coisas de Deus e coisas do Diabo; arte sacra e arte profana, música gospel e música do mundo, coisas espirituais – orar, jejuar, pregar – e coisas carnais – trabalhar, divertir-se, exercitar-se.  

Fico feliz em saber que a proposta de Jesus é de ressignificação de minha consciência de tal forma que eu encarne os valores e verdades do Reino. Deus é soberano sobre tudo, tanto o que é natural quanto o que é espiritual, pois, para Ele, as duas dimensões são uma coisa só.

Por isso, o que sei é que devo ser santo, como santo é o Senhor, tanto na faculdade quanto na igreja, tanto no trabalho quanto na reunião de oração, tanto no campo de futebol quanto na escola dominical!

Desta forma, nem tudo é coisa do Diabo, como também nem tudo é coisa de Deus. Há, pois, coisas que são do homem, ou seja, escolhas e decisões que são tomadas nos trilhos do cotidiano e que trazem, por si mesmas, as suas consequências, seja para o bem, seja para o mal.

Você pode perceber isso na parábola do “Bom Samaritano”. O caminho era um só, e todos iam por ele: tanto os salteadores quanto o transeunte agredido, o levita, o sacerdote e o samaritano. A única diferença, contudo, era a forma como cada um deles estava caminhando.


Carlos Moreira

1 comentários:

"Talvez daqui há alguns anos eu escreva um livro só com as “pérolas” que ouço semanalmente no gabinete pastoral."

Vai ser um livro de sei lá quantas páginas...rs

Mas eu creio que realmente um pastor (que não é pastor-ator-cantor-popstar e às vezes dá um "aconselhamento" via twitter) vê, acompanha o sofrimento da pessoa, sem poder muitas vezes fazer nada e isso é desgastante, porque muitas vezes tb. é amigo pessoal.

E é uma responsabilidade intensa, porque a pessoa quer saber se faz ou não faz, se deve ir ou não e a esperança no olhar dessa pessoa o pastor percebe que a pessoa está vendo nele a decisão do seu rumo.

E não é sempre que o pastor pode bater o martelo e dizer: isso vai te trazer complicações, não faça.

E realmente, querer saber se é de Deus ou do diabo às vezes ainda é a ânsia maior do que a própria questão. E é muito comum as pessoas verem muito o lado "religioso" da coisa e quererem tal resposta se é de um ou de outro.

Mas também sei que quando o pastor ajuda alguém de tal forma que a pessoa se reergue, decide o que tem de decidir, a gratidão compensa qualquer cansaço que teve com aquela pessoa.

Abraço.
Patrícia

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