Hoje à tarde fui ao shopping; coisa rara. Tinha que comprar um chip para o iPad e aproveitei para pagar uma conta telefônica na lotérica. O que deveria ser uma comodidade tornou-se, na verdade, um suplício. A fila era enorme, gente se apertando de todos os lados num pequeno corredor por trás das lojas.
Depois
de meia hora sem sair do canto, eu já estava “viajando”. Minha cabeça,
definitivamente, não se encontrava mais naquele lugar. Ouvia ao fundo um “zumbido”,
mas ele não podia me tirar do meu “transe”. Foi aí que senti uma “cutucadela”
nas costas. Virei-me e vi uma senhora dizendo: “meu filho, preste atenção! A fila já andou”. De fato, a fila andara
e eu não havia me apercebido.
Mas não foi só a fila da
lotérica que andou... Em quase 30 anos de caminhada, percebo claramente que uma
outra “fila" também andou, aquela que me conduz para dentro de mim mesmo.
Hoje, constato com alegria que, enquanto caminhava, desconstruí muita coisa que
foi “erguida” erroneamente. A verdade é que pouco sobrou... Às vezes
releio textos ou mensagens de alguns anos e não os reconheço. “Minha teologia”
mudou significativamente nos últimos anos. Dores, perdas e alguns fracassos me
tornaram mais humilde, mais quebrantando, talvez, mais simples.
Lembrei
do Roberto Corrêa: “o simples é o
contrário do fácil”. É muito comum confundirmos simplicidade com simplismo.
Ser simples é ser singular; ser simplório é ser medíocre. Tenho pavor da
banalidade, da unanimidade. Meu grande medo na vida sempre foi não me tornar
alguém, não chegar nunca a ser eu mesmo, não me encontrar comigo.
É
por isso que Jesus me fascina! Ele sabia quem era, conhecia o significado
de sua existência, compreendia as implicações de sua vocação, seu propósito, discernia
o que tinha de fazer, por onde devia andar, com quem precisava se ajuntar. O
estilo de Jesus era singular, inconfundível.
Diferentemente
de outros mestres, como Platão, que fundou uma academia, ou Aristóteles, que
fundou um liceu, Jesus não fundou coisa alguma. Aliás, foi peça fundamental
para afundar tradições, dogmas, ritos e mitos do “sagrado” de Israel.
Jesus
era desalojado, era como o Pai, “claustrofóbico”, não podia ser “contido”,
“aprisionado”. Ia às sinagogas, mas nunca quis ser membro delas, rejeitou a
tentação de ser sacerdote, passou ao largo da possibilidade de tornar-se
“refém” do Templo, deixou de lado a politicagem do Sinédrio e fez caso
das seitas judaicas. Para Jesus, aquilo tudo tinha cheiro de morte, era a
religião das aparências, da performance, do embuste, o estelionato do ser.
Por
isso a escola de Jesus era na rua, nas esquinas, nos becos das cidades, nas
casas, nos ajuntamentos a beira mar, ao pé das montanha ou nas colinas. Seus
alunos não eram filósofos letrados, nem rabinos eruditos, muito pelo contrário,
entre seus discípulos não havia pessoas com “pedigree”, apenas gente que queria aprender a ser gente.
Se
não, observe! Veja se os encontros mais significativos de Jesus não foram com a
rafaméia: a prostituta que ia ser apedrejada, os 10 leprosos, Zaqueu o publicano,
a mulher do fluxo de sangue, o cego de Jericó, o aleijado do tanque de Betesda,
a mulher Cananéia, a viúva de Naim, o endemoninhado gadareno, e outros tantos
anônimos, excluídos, oprimidos, perseguidos.
Lembro
da parábola das bodas... Os convidados eram pessoas “distintas”, “nobres”,
gente de “importância”, de “destaque”. Mas todos tinham seus afazeres e fizeram
pouco caso do convite. Aí o Rei mandou chamar a gentalha, os estorvos, os
miseráveis e os bêbados. Se fosse hoje estariam na festa viciados em crak,
transexuais, lésbicas, gays, agiotas, traficantes, aidéticos, deprimidos,
flanelinhas, e outros “diferentes”. Fico pensando se eu teria a dignidade
necessária para me sentar à mesa com essa gente. Talvez não...
Fato
mesmo é que Jesus ora estava aqui, ora ali, outra ora sabe-se lá onde. Até seus
discípulos, por vezes, o perdiam de vista. Ele era ser errante, não tinha onde
reclinar a cabeça, não criava “raiz”, nem amarras, sua casa era o mundo! Quando
você pensava que Ele estava vindo, já tinha ido. Para Jesus a fila sempre
estava andando, a vida sempre estava fluindo. Mas, desgraçadamente, aquela
geração não soube reconhecer aquela “visitação”.
Olho
as pessoas nos nossos dias... Elas estão sempre insatisfeitas, reclamando,
querem mais e depois mais, buscam a fixidez, o concreto, a segurança, a
estabilidade. Enquanto perdem tempo com suas questiúnculas, “a fila anda”, o sonho
passa, a vida segue, o tempo voa. É gente insegura, gente ansiosa, gente
ingrata, gente irresolvida, gente intemperante, gente que deixou de ser gente,
gente que se dessignificou como gente, gente que desaprendeu a ser gente,
tornou-se substrato de gente, gente partida, dividida, gente que já não é mais
gente.
Para
quem chegou neste estágio, só tenho uma coisa a dizer: “a fila já andou”.
Enquanto você se emaranhava com tantas questões fúteis, com tantos projetos
inúteis, com tanta megalomania, “a fila estava andando...”. Havia nas esquinas
da vida gente precisando de carinho, de afago, de uma mão estendida, de uma
palavra de conforto, de uma ação de misericórdia, de uma atitude de
solidariedade, de uma decisão corajosa, de uma posição assumida, de uma
consciência renovada, de uma alma quebrantada, de um coração expandido. E você,
onde estava? Onde eu estava?! Ah, nós estávamos nos templos, nas reuniões, nos
encontros religiosos, nas vigílias, nos seminários, estávamos “fazendo a obra”!
Mas que obra?! A obra de quem?!
Hoje
à tarde eu quase adormeci naquela fila... Agora estou com medo de estar
adormecido quanto à existência que me cerca, aos dramas que me rodeiam, as
calamidades que acontecem a minha porta, na minha cara, na esquina da minha rua,
na frente do meu trabalho, na ponte, na praça, pois nestes lugares é onde estão
os bêbados, os mendigos, os gays, os travestis, os maconheiros, essa gente que
eu tenho desprezo de olhar, aversão de ouvir, nojo de tocar, medo de sentir.
Entretanto,
o grande paradigma em tudo isto é que são justamente estes que Jesus quer que
eu convide para a “festa”, pois são eles os mais receptivos a Graça e ao Reino.
Agora, se eu não me “tocar” quanto a isto, corro o sério risco de, em algum momento, ouvir dEle: “desculpe filho; "a fila já andou"; tive de
usar outro em seu lugar, pois você estava muito ocupado com a sua obra”.
Pense nisso...
Carlos Moreira
Carlos Moreira
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