Recentemente, lendo uma crônica de Luiz Fernando Veríssimo, onde ele descreve, com sua habilidade e ironia peculiar, as frustrações que experimentamos diante das inúmeras alternativas e possibilidades que temos na vida, senti uma imensa nostalgia me invadir o ser. É que Veríssimo escreve que freqüentemente as pessoas se perguntam, com uma forte dose de recalque: "por que não aceitei aquele convite? Por que não mudei para aquela cidade? Por que não fiz vestibular para medicina? Por que não casei com aquela pessoa?".
A boa leitura me fez pensar e considerar o quanto a vida é fragmentada, rompida, por causa de decepções e desilusões que sofremos. Ao lamentar as escolhas erradas, as oportunidades perdidas, as experiências que tivemos ou as que evitamos ter, criamos uma ruptura em nossa história e deixamos nascer um processo descontinuado em nossas narrativas pessoais que acaba, por fim, comprometendo nosso crescimento e amadurecimento.
Como pastor observo que a escuta “terapêutica”, por vezes, se torna um depósito de amarguras e frustrações. As traições, os abusos, os abandonos, as escolhas erradas, as mentiras, e muitos outros aspectos fazem adoecer a alma e criam em nós feridas expostas, profundas. Se fosse possível, eliminaríamos em definitivo do livro da nossa história tais episódios. Mas a trajetória de cada um é escrita com todos os matizes possíveis, pois eles estão presentes no caminhar da existência. Ignorá-los, ou tentar apagá-los, não fará deles uma realidade menos presente. O fato é que a vida é feita mais de derrotas do que de vitórias! Quem já não sofreu uma derrota? Quem já não se viu vencido por uma circunstância, por um problema, por uma crise, pelo pecado? O poeta diz que “quem na vida não sofreu, passou pela vida e não viveu”.
E você? Já sofreu perdas na vida? Já beijou a lona? Já “quebrou na emenda e estourou no pito”? Já foi visitado pelo fracasso? Gosto muito da frase de Thomas Watson “o caminho para o sucesso é dobrar a taxa de erros”. Eu acredito que todos nós precisamos, sempre, de uma outra oportunidade. Alguns precisarão até de mais; uma terceira, ou uma quarta... Às vezes isso é possível; às vezes, não... Mas aqui quero tratar da possibilidade de se refazer algo que foi construído de forma equivocada. Quantos não gostariam de uma nova chance na profissão, ou uma nova oportunidade no amor, ou a possibilidade de recuperar um determinado tempo perdido, ou concertar um erro grave, uma ofensa dita, uma desavença feita, uma palavra dura, sarcástica, que teve o poder de marcar a história de alguém. Quem não gostaria de ter uma segunda chance?
"Vocês são os chefes das famílias levitas; vocês e seus companheiros levitas deverão consagrar-se e levar a arca do Senhor, o Deus de Israel, para o local que preparei para ela. Pelo fato de vocês não terem carregado a arca na primeira vez, a ira do Senhor nosso Deus causou destruição entre nós. Nós não o tínhamos consultado sobre como proceder". 1ª. Cr. 15:13.
Este episódio, relatado no livro de 1a Crônicas, é suigeneris. Ele é o desdobramento do que aconteceu no capítulo 13, quando Davi, após a morte de Saul, assume o Reino de Israel. O texto do capítulo 13 nos mostra um Davi determinado, com uma visão clara daquilo que precisava ser feito. Seu primeiro ato como governante era “trazer a arca da aliança e colocá-la em Jerusalém, pois, nos dias de Saul, não nos valemos dela”. A decisão de Davi não era política, econômica, social, institucional, mas religiosa. Era a afirmação de que, sem a shekinah de Deus – sem a Sua presença – que era o arquétipo significativo daquele artefato, nada poderia ser feito, nada seria levado a bom termo. Em outras palavras, Davi estava dizendo a nação, ou nós entronizamos Deus em nosso meio, e damos a Ele o lugar de honra que Ele merece, ou morreremos como morreram Saul de Jônatas nas mãos dos Filisteus.
A idéia parecia ser divina! E Davi não perdeu tempo. Mandou que se adornasse um carro de boi novo, e que a arca fosse trazida da casa do sacerdote Abinadabe para ser posta em Jerusalém. O Rei vinha à frente do “comboio”, dançando e celebrando diante do Senhor, e o povo vinha em seguida, com alaúdes, tamborins e outros instrumentos musicais. Finalmente, como um andor de procissão, vinham “escoltando” a arca dois sacerdotes, Uzá e Aió. Tudo parecia estar sendo feito de maneira magnífica, da melhor forma possível, com o melhor do coração de cada um. Mas, diz o texto, que quando eles chegaram à eira de Quidom, os bois tropeçaram e Uzá pôs à mão a arca para sustentá-la, pois ela ameaçava cair. Imediatamente a ira de Deus se acendeu e ele foi fulminado ali mesmo, morrendo instantaneamente.
Davi ficou obviamente chocado com tudo aquilo... Imagino sua inquietação, suas indagações. “Ora, eu quero fazer algo bom, quero honrar a Deus, quero trazer a arca para Jerusalém, e me acontece uma desgraça dessa”. Sua aflição era legítima! Seu desconforto era genuíno! E ele encerra este episódio com uma colocação inquietante: “como trarei a mim a arca de Deus?”.
Hoje eu entendo melhor o que aconteceu com Davi... Nem sempre boas intenções, “um carro de boi novo”, “homens do sagrado” na condução de tarefas, o povo batendo palmas, dançando, celebrando, é a garantia de que Deus está aprovando aquilo. No caso em questão, Deus havia abominado. Nem sempre decisões “sensatas” são o “caminho de Deus”. Nem sempre escolhas “racionais” são o “caminho de Deus”. Nem sempre “boas motivações” representa o fato de Deus aprovar algo”. Já dizia o profeta Isaías “os meus caminhos não são os vossos caminhos, os meus pensamentos, não são os vossos pensamentos”.
Alguns anos se passaram... Davi teve tempo para meditar em tudo o que houvera. Ele viu, por exemplo, que a arca não podia ser levada num carro de boi, mas apenas nos ombros dos levitas. Percebeu que antes de qualquer empreitada daquele tipo era necessário haver consagração, santificação, pois não se tratava de um evento “midiático”, não precisava de show gospel, de trio elétrico, de pirotecnia, de catarse da multidão, de propaganda de televisão, mas apenas de corações contritos e quebrantados.
O texto que apontei acima trata da segunda tentativa de Davi de trazer a arca para Jerusalém. Me parece que o fracasso advindo da primeira empreitada e alguns anos de ponderações e reflexão ajudaram o mavioso salmista de Israel a fazer, desta feita, a coisa certa. Ele foi examinar o que dizia a “lei de Moisés”, mandou o povo consagrar-se, colocou a arca aos ombros dos levitas e, por fim, da maneira de Deus, e não da sua maneira, conseguiu conduzi-la até Jerusalém.
Nem sempre o que Deus abençoa, Ele aprova. Já vi diversas vezes coisas acontecerem em nome de Deus, pessoas serem curadas, cheias do Espírito Santo, renovadas, libertas e, ainda assim, sei que Deus não estava aprovando a maneira como aquilo estava sendo realizado, sobretudo por causa da forma como as pessoas estavam fazendo. Mas, saiba-se em toda a Terra: “a Palavra de Deus nunca volta vazia”. Se as pedras clamarem, e isto for um ato de Deus, pessoas certamente serão salvas!
Sei que todos nós precisamos de uma segunda chance. Davi teve a sua. Eu preciso da minha. Talvez você também. Nem sempre boas intenções revelam a vontade de Deus. Nunca “revelações”, “estratégias”, “planos mirabolantes”, ou qualquer outra coisa tornará Deus refém de algo que queiramos fazer sem que isto esteja em Seus propósitos. Nós gostamos de coisas espalhafatosas, mas Deus não é performático; Ele é simples, manso e humilde de coração.
Eu não sei quais são os seus dramas. Conheço bem os meus. Gostaria de, em muitas coisas na minha vida, ter tido uma segunda chance. Não sei se ela será possível, mas, se for, agarrarei a oportunidade com todas as minhas forças. Digo isto em função do que aprendi com Winston Churchill de que “um pessimista vê uma dificuldade em cada oportunidade; mas um otimista vê uma oportunidade em cada dificuldade”. Espero, de todo o meu coração, que você também possa ter a sua...
Carlos Moreira
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