OS FATOS
Um adolescente drogado, sem emprego, sem estudo, sem opções, é autor de pequenos furtos e delitos.
Dois jovens que não acreditam nem no Estado nem na Polícia se tornam justiceiros locais e realizam tortura psicológica e física como forma de punição do indefeso infrator.
A sociedade viraliza, nas redes sociais, o vídeo desta tortura e desperta todo tipo de sentimento, alguns apoiando, outros condenando a ação. Uma “corrente do bem” é iniciada com vistas a “resolver” o problema da inscrição “Sou ladrão e vacilão” feita na testa do infrator. A ação visa, através de uma arrecadação de fundos, realizar cirurgia reparadora do dano epidérmico da tatuagem.
OS FEITOS
O infrator será em breve cirurgiado, removerá da testa a inscrição maldita, terá recomposta a pele, mas continuará tatuado na alma, vitimado que foi por esta ação violenta.
O texto acusatório pode até desaparecer, mas os dizeres que estão na consciência não têm como ser removidos: “Eu sou um sujeito sem esperança”, “Eu sou um drogado e prostituído”, “Eu não tenho estudo nem opções”.
A questão é: até onde ele é vítima e até onde é vilão? Como chegou a este estágio? Como sairá dele? Qual foi o seu passado, qual é o seu presente, qual será o seu futuro? São questões que ficarão abertas, não têm como ser reparadas ou removidas.
Quanto aos dois justiceiros valentões, serão punidos com os rigores da lei. Sim, eles não são membros de um grupo de extermínio profissional, fosse assim, o infrator estaria morto, mas se sentiram no direito de fazer a ação como forma de punição pública, representam o cidadão comum indignado e cansado com um Estado ineficaz e injusto, que prende por 5 anos um homem por carregar pinho sol consigo e absolve, com farto material provatório, o Presidente da República enredado com corrupção até o pescoço.
Eles representam, ainda, a insatisfação da sociedade com uma Polícia que resolve apenas 5% dos assassinatos do país, que mata o preto e o pobre, que se alia, não raro, com os marginais, para receber “pedágio” e propina, que é despreparada e mal paga, mal aparelhada e pouco eficiente.
E nós, na qualidade de cidadãos brasileiros, continuaremos com essa “indignação de ocasião”, nos movendo via redes sociais para realizar ações cirúrgicas e paliativas.
De fato, eu e você continuaremos alimentando esta hidra de muitas cabeças que é o Estado, que não fornece educação, segurança, saúde, emprego, e relega os habitantes desta nação a sobreviver como se estivessem numa selva de pedra e cimento, onde as regras servem para uns e não servem para outros, onde a polícia mata o pobre, a justiça absolve o rico, a economia serve os bancos, os políticos são parasitas se alimentando de benesses, os mega-empresários são desonestos e corruptores, e o povo é indolente com a perda da moral e leniente com a falta de ética.
A ação “reparadora” que está sendo feita, tem seu valor, mas serve, flagrantemente, como desculpa para, no fundo, amenizar nosso descaso com o que acontece diante de nossos olhos todos os dias. Vamos remover a tatuagem infame do rosto do garoto, mas não poderemos remover tudo o que está tatuado em nosso coração e consciência e que reverbera como imobilismo e desprezo pela dor humana, como insensibilidade com a tragédia social que está na porta de nossa casa e como falsa religiosidade que nos faz sentar nos bancos da igreja e ignorar o que acontece para além das paredes do templo.
Carlos Moreira
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