“Pois o filho despreza o pai, a filha se rebela contra a mãe, a nora, contra a sogra; os inimigos do homem são os seus próprios familiares”, Mq. 7:6
É certo que o ser humano não se desenvolve de maneira plena em suas competências emocionais, motoras e cognitivas sem a presença de uma família. Também é fato que ela é o núcleo sobre o qual a sociedade se desenvolve. Por isso, quanto mais saudável e sustentável for, melhores serão as possibilidades de constituir um povo bem-sucedido.
Contudo, não há como negar, famílias também podem se revelar “usinas” de neuroses, ambientes de agressão e desconstrução do ser, lugares que fazem a psique adoecer, casas onde a erosão relacional provoca feridas tão profundas que acabam esculpidas na alma, ficam “impressas” no indivíduo para todo o sempre. Não se enganou Lutero, o grande reformador, quando proferiu: “A família é a fonte da prosperidade e da desgraça dos povos”.
Esse texto de Miqueias foi escrito no ano 690 a.C. Vivendo as agruras de seu tempo, mergulhado em meio a uma sociedade desprovida de significados, o profeta nos expõe o mosaico da dessignificação a qual o ser humano pode chegar. Na sua leitura lúcida e realista, constata que até mesmo as relações parentais haviam perdido o seu propósito, pois o amor afastara-se, em definitivo, do coração dos homens.
Fato é que as Escrituras não camuflam os dramas vividos em família. Pelo contrário, em suas páginas encontramos, por vezes, com riqueza de detalhes, dramas dos mais diversos experienciados dentro da própria casa, os quais envolvem todos os seus atores. Nem mesmo Jesus foi poupado de viver tais circunstâncias, pois, em João 7, vemos que seus próprios irmãos sanguíneos não acreditavam nele, ainda que vissem as obras que Ele realizava.
Só para demonstrar como o tema é complexo e difícil, lembre-se que Caim matou o seu irmão Abel; os filhos de Noé zombaram do pai que havia se excedido na bebida; Ló se desentendeu com Abraão e se apartou dele; Jacó enganou o pai e roubou o irmão com a aquiescência da mãe; os irmãos de José, com ciúmes, o venderam como escravo; Dalila traiu o seu marido, Sansão, por 1.100 moedas de prata; Absalão matou seu irmão Amnom e este, por sua vez, estuprou a própria irmã; a mulher de Jó aconselhou-o a blasfemar contra Deus.
Se formos observar as leis dadas a Moisés, veremos quantas citações existem para regulamentar as conflituosas relações entre os membros de uma família. Certa estava Madre Teresa de Calcutá ao referir: “É fácil amar os que estão longe. Mas nem sempre é fácil amar os que vivem ao nosso lado”.
De fato, Miqueias fez uma leitura bastante coerente quando afirmou, a partir de sua própria percepção de mundo, que os inimigos do homem estavam em sua própria casa, dentro da família. Isso acontece porque as relações familiares são mesmo difíceis, cheias de idiossincrasias, pois, aqueles a quem mais amamos, não raro, são os que mais profundamente são capazes de nos ferir.
Quando o indivíduo nasce em um lar equilibrado, onde os relacionamentos são saudáveis, onde há respeito e amor, a vida certamente é muito mais fácil de ser vivida. Mas o que fazer quando a família a qual pertencemos é uma família doente? O que fazer quando conviver no ambiente familiar produz feridas, quando estar entre aqueles que são do nosso sangue significa ficar exposto a toda sorte de problemas, humilhações, destemperos, agressões e maus-tratos?
Há ainda outro agravante: o que fazer com as prementes advertências das Escrituras sobre o tema? Como lidar com textos tais como: “Mas, se alguém não tem cuidado dos seus, e principalmente dos da sua família, negou a fé, e é pior do que o infiel”, 1ª Tm 5:8; “Filhos, obedeçam a seus pais no Senhor, pois isso é justo. Honra teu pai e tua mãe, este é o primeiro mandamento com promessa...”, Ef. 6:1-3; e finalmente: “Façam todo o possível para viver em paz com todos”, Rm. 12:18.
Bem, numa leitura rasa, simplista, sem observarmos certos contextos familiares, tudo parece muito óbvio. Porém, há casos em que a “letra” acaba sendo usada para a morte, não para a vida! O que fazer, por exemplo, com um pai que molestou durante toda a infância a filha? Ou com o marido que traiu a esposa tendo constituído outra família? Ou com a sogra que envenena o filho contra a nora? Ou com o genro que quer afastar a filha do convívio com os pais? Questões como essas nos levam a refletir o quão complexo é este cenário e como é difícil emitir qualquer parecer sobre ele.
Eu não estou dizendo aqui que nós devemos relativizar as Escrituras, que elas se aplicam a uma situação e a outra não. Mas há de considerar que existem casos que precisam ser tratados como exceção. Lembremos, por exemplo, do que disse Jesus sobre o divórcio, que ele se constituía uma concessão de Deus por causa da dureza do coração dos homens. O propósito de Deus é que o casamento seja indissolúvel, mas há situações em que o convívio conjugal torna-se insalubre ao ser. Nesses casos, lembrando Paulo, que afirma: “Deus os tem chamado à paz”, é melhor apartar-se do que viver, literalmente, no inferno!
Olhando para a existência sempre me deparo com dramas familiares. Parece não haver algo que seja tão destrutivo na vida das pessoas quanto essas questões. Nessas circunstâncias o que observo é que é preciso ser cauteloso, buscando sempre tratar o assunto conforme o “espírito” do Evangelho, e não conforme o “espírito” da Lei. Certo é que cada caso é um caso, e que não devemos nos precipitar ao fazer análises legalistas que desembocam em sentenças temerárias. Por isso, nunca esqueço o que disse Shakespeare: “Todo mundo é capaz de suportar uma dor, exceto quem a sente”.
Família é coisa santa, sagrada e maravilhosa. Mas também pode ser uma tragédia na vida de muitos. No final do Velho Testamento, o profeta Malaquias adverte: “Ele fará com que os corações dos pais se voltem para seus filhos, e os corações dos filhos para seus pais; do contrário eu virei e castigarei a terra com maldição.”, Ml. 4:6. Essa sentença nos remete ao fato de que a desagregação gerada pela crise familiar produz tanta desarmonia e desgraça que aquilo que acontece no íntimo de uma casa acaba se constituindo ferida, e não paz e bem na vida.
O psicanalista francês Charles Melman, colaborador de Jacques Lacan e herdeiro de Freud, atento observador da realidade contemporânea, afirmou: “Pela primeira vez na história, a instituição familiar está desaparecendo, e as consequências são imprevisíveis. Impressiona-me que antropólogos e sociólogos não se interessem por isso”. Em suma, o que vejo é que sua percepção, mesmo não sendo ele um “homem do sagrado”, reforça ainda mais o que afirmou Malaquias, cerca de 2.500 anos atrás.
Eu sei que família é algo que nasceu no coração de Deus, mas também não tenho como negar que, por vezes, cada vez de forma mais recorrente, ela pode produzir mais mal do que bem. Como afirmou Sartre, diante de um contexto específico: “Família é como a varíola: a gente tem quando criança e fica marcado para o resto da vida”.
Carlos Moreira
Eu sei que família é algo que nasceu no coração de Deus, mas também não tenho como negar que, por vezes, cada vez de forma mais recorrente, ela pode produzir mais mal do que bem. Como afirmou Sartre, diante de um contexto específico: “Família é como a varíola: a gente tem quando criança e fica marcado para o resto da vida”.
Se você se encontra entre os que não têm como manter vínculos familiares sadios, se sua família complica mais do que ajuda, se o convívio, por questões diversas, tornou-se insustentável, não se desespere. Tenho visto, com o passar dos anos, que Deus sempre encontra formas de conspirar a nosso favor. Assim, muitos são abençoados com “pais”, “mães”, “irmãos” e “irmãs” que são do coração, fazem parte da família da fé, surgiram em nossas vidas para suprir lacunas que ficaram em nossas almas.
Por outro lado, percebo que guardar rancor e sentimentos de amargura contra os da própria casa não resolve o problema, muito pelo contrário, quem faz estoque no ser de tais sentimentos sempre caminha carregando fardos pesados, pois o ódio faz mal a quem o retém, e não a quem dele é alvo.
Carlos Moreira
4 comentários:
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