Ainda hoje eu me perturbo quando penso no sepultamento de meu pai. Só sabe o que é isso quem já enterrou alguém querido na vida. Das muitas lembranças, todas muito doídas, uma me atormentou até bem pouco tempo atrás: o fato de não ter conseguido derramar uma única lágrima em seu funeral.
Quando você perde alguém que ama, sempre acha que poderia ou
deveria ter feito algo a mais. Essa sensação de culpa, não raro, faz as pessoas
adoecerem. Comigo não foi diferente. Filho único, vi meu pai ser vitimado pelo
câncer em 2006, três meses após detectar a doença. Racionalmente, sabia que havia
feito o possível, o que estava ao meu alcance. Mas, inconscientemente,
carregava culpas infundadas, punia-me por não ter realizado o impossível: salvá-lo.
Quem me viu no enterro, naquela manhã de segunda-feira, se
não me conhecia bem, provavelmente achou que eu não estava sentindo
absolutamente nada. Minha expressão era serena, apesar de circunspecta, a voz
projetava-se suave, agradecendo a solidariedade de parentes e amigos, não havia
lágrimas em meus olhos, nem desespero em minha face. Era meu pai quem estava
ali, morto, no caixão, mas sei que, para muitos, parecia um qualquer dos tantos
que, como pastor, já enterrei.
Passados alguns meses, processadas as dores, vivenciado o
luto, tomadas todas as resoluções inerentes a um falecido, eu enfim,
“descansei”. E foi justamente aí que os problemas começaram... Três meses haviam
se passado quando meu corpo resolveu “falar”, tomou uma decisão unilateral de
expelir tudo àquilo que minha alma guardara só para si, aprisionara nos
escaninhos mais profundos do meu ser.
Eu sentia dores no corpo, no abdômen, nas costas, sentia
palpitações no coração, falta de ar, pressão no peito, compressão na alma,
desespero e medo. Algumas vezes, de tanta agonia, fui até o hospital, mas
quando examinado, não possuía nada. Fiz check-up,
tudo quanto foi tipo de exame, nada, absolutamente, nada!
Durante quase toda a vida havia sido uma pessoa trancada,
travada. Hoje consegui as explicações para alguns comportamentos, desde um
temperamento recluso, tímido, até uma criação super-protetora, asfixiante. Mas
até descobrir estas coisas, precisei “cavar” fundo até chegar ao interior do
ser, embarquei para dentro de mim mesmo em busca de quem eu sou, decidido a me
encontrar de qualquer maneira.
Muito aos poucos, como alguém que está tateando no escuro,
comecei a liberar algumas emoções, antes reclusas. Era como se tivesse tomado o
controle que o ego exercia sobre minha consciência e entregue ao “Id”, que
“habita”, grosso modo, o meu inconsciente, aqui me referindo aos conceitos da
teoria psicanalítica de Freud.
O que posso dizer hoje, passados alguns anos, é que
alterações profundas aconteceram e ainda continuam acontecendo em minha alma.
Desde que comecei a me abrir para a vida, a ser mais sensível, alternando em
meu ser a sensibilidade do poeta com o pragmatismo do profeta, passei a
perceber a existência por outros matizes, aprendi que chorar faz bem, por isso
as Escrituras afirmam que o caminhar humano deve ser regado por lágrimas, pois
elas se tornam sementes de esperança sob o solo empoeirado da vida.
O melhor, todavia, ainda estava por vir... No ano passado,
no dia dos pais, resolvi fazer uma singela homenagem ao meu “velho” no blog. Escrevi um punhado de palavras,
duas dúzias, e coloquei o vídeo do Fábio Júnior cantando a canção “Pai”. Montei
tudo no blogger, publiquei, e fui
escutar. Estava no meu escritório, no apartamento onde moro, e era tarde da
noite, horário que normalmente escrevo.
De repente, como um vulcão em erupção que “cospe” larvas as
alturas, comecei a chorar. Lembrava do meu pai, dos momentos bons que vivemos,
dos momentos difíceis e tristes, era um caldeirão de emoções com meus
sentimentos “borbulhando” dentro de mim, e eu ali, absorto, na solidão daquela
noite inesquecível. Sim, eu chorei intensamente, anos depois de sua morte, tudo
o que não havia chorado no dia de seu enterro. Deus sabe o quanto aquilo foi
libertador para mim, quanta alegria eu tive em chorar daquele jeito.
Eu creio firmemente que um dos maiores desafios do Espírito
Santo é reconstruir nosso interior, o qual, não raro, foi “ferido” de muitas
maneiras diferentes pela vida. Por conta disto, acabamos nos monstrificando, nos tornando seres de aço,
nos esquecendo que somos, simplesmente, pó e osso. Hoje acredito que a vida só
pode ser vivida na sua singularidade maior se pudermos sentir todas as emoções
que cada momento nos reserva e nos remete.
Por isso Jesus me fascina tanto, pois ele encarna o
verdadeiro Homem, expondo-nos todas as suas dimensões e revelando-nos todas as
suas emoções. Sim, o Galileu chorava, se alegrava, falava contundentemente e se
calava de forma inquietante. Nunca se furtou de experimentar nem a doçura nem o
amargor, nem a ternura nem a dor, fazia tudo com intensidade, por isso era Totalmente
Homem e Totalmente Deus. De fato, como diz karl Barth, ele era mesmo o “Totalmente
Outro”.
Carlos Moreira
Carlos Moreira
1 comentários:
Minha história é mt parecida com a sua...
A morte do meu pai, a falta de lágrimas na morte dele e a queda algum tempo depois, o corpo reclamando o silêncio, a criação super-protetora, tudo mt parecido...
Deve ser por isso que me identifico taaanto com seus textos...
Meu pai se foi em 2004, minha mãe se foi agora em Novembro...
Eu aprendi a lição, tive meu momento de luto real agora na morte de minha mãe, no momento certo, e não me fiz de aço como antes. Tá sendo menos doloroso seguir....A saudade fica, é claro...
Realmente, ver Jesus, tão homem, porém Deus, nos fortalece...De fato não há outra palavra pra definir melhor: FASCINANTE.
@danysussa
www.danofjesus.tumblr.com
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