"Quando um espírito imundo sai de um homem, passa por lugares áridos procurando descanso e não encontra, diz: ‘Voltarei para a casa de onde saí’. Chegando, acha a casa desocupada, varrida e em ordem. Então vai e traz consigo outros sete espíritos piores do que ele, e entrando passam a viver ali. E o estado final daquele homem torna-se pior do que o primeiro. Assim acontecerá a esta geração perversa". Mt. 12:43-45.
Já não é de hoje que me apercebi que fenômenos individuais
têm, não raras vezes, o poder de se transportar para o coletivo. Em se tratando
de manifestações espirituais, isto é ainda mais comum, como podemos ver no
texto acima.
Desde o verso 38, Jesus vem discutindo com os fariseus sobre
as marcas daquela geração perversa que, mesmo sendo testemunha de muitos
milagres e prodígios, insistia em manter duro o coração e petrificada a
consciência. Na verdade, eles nunca se davam por satisfeitos, e pediam mais e
mais sinais.
Em linguagem junguiana, quando um assunto vira o centro das
atenções de uma determinada sociedade, como era o caso ali, ou seja, “toda
vez que ocorre um fenômeno de massa, um tema do inconsciente coletivo é
ativado para através da projeção coletiva poder ser elaborado, compreendido,
para que a consciência coletiva possa evoluir através da compreensão daquele
tema”.
Aquele fenômeno, na verdade, se transformara em
arquétipo, passando a ser dramatizado através das projeções individuais das
pessoas. Estas, por sua vez, assumiram papéis de protagonistas no drama existencial
coletivo que estava sendo construído e que dizia respeito não só a
individualidade de cada uma, mas a totalidade daqueles que compunham àquela
“geração”.
No texto de Mateus, Jesus parte de um fenômeno individual,
com seus desdobramentos próprios, e chega ao coletivo, afirmando que aquilo que
se processava no micro-universo religioso, carregava em si mesmo todas as
potencialidades de tornar-se fenomenologia coletiva. Se não, vejamos: “E o estado final daquele homem torna-se pior
do que o primeiro. Assim acontecerá a esta geração perversa".
Mas o que estava sendo tratado ali? Quais as
subliminaridades do texto que não estão evidentes a “olhos nus”? São duas as
questões relativas ao possuído, as quais acabavam se transportando para uma
possessão coletiva.
Em primeiro lugar, Jesus usa uma alegoria para tratar da
questão individual e interior da vida humana que se torna desprovida de
significados e conteúdos. Isto está posto quando ele afirma que o demônio,
deixando aquele indivíduo, procura “lugares áridos” para repousar. Ora, aqui
fica claro que aquele espírito havia saído de um “lugar árido” em busca de
outro, ou seja, que aquela pessoa havia se tornado, pela via da dor, da
amargura, do medo, do desespero, do ódio, e de outros matizes da existência,
que por diversas formas se instalaram no seu ser, um deserto, uma terra
devastada!
Como a “serpente se alimenta do pó da Terra”, usando a
metáfora do Gênesis, os principados e potestades se alimentam de toda a
produção humana que irradia dos indivíduos rancores, invejas, ciúmes,
murmurações, e toda sorte de energia psíquica que, acumulada pelo sofrimento e
pela dor, acaba emanado tudo o que é “veneno” e que por fim servirá de
“banquete” aos demônios!
Em segundo lugar, Jesus trata do que se processa do lado de
fora – “‘Voltarei para a casa de onde
saí’. Chegando, acha a casa desocupada, varrida e em ordem...”. Aqui temos
a existência na qual se fez uma “maquiagem”, aquela pintura que serve apenas
para esconder a sujeira e as marcas profundas que a vida produziu.
De fato, Jesus estava fazendo uma analogia as práticas
coletivas da religião de Israel, a qual, apesar de apresentar-se “varrida e
ornamentada”, vivia da aplicação performática de ritos e mitos do sagrado, os
quais produziam uma espiritualidade caricaturada, onde a “mobília” das
liturgias e sacrifícios servia apenas para produzir uma fé de epiderme, um
verniz ético, uma crença de fachada, pois os conteúdos não se enraizavam em
direção ao coração, não se aninhavam nos escaninhos da alma, não podiam
alcançar os meandros da consciência.
E assim, conclui Jesus, o estado final daquele homem tornara-se
pior que o primeiro, pois não há nada mais corrosivo ao ser do que viver no
embuste, no estelionato, na falsificação, ser “figueira sem fruto”, amargando
existir para fora, numa eterna estação outonal. E ele finaliza afirmando que aquela
possessão individual tinha o “poder” de se transladar também para o coletivo “Assim acontecerá a esta geração perversa",
como de fato estava ocorrendo.
Carlos Moreira
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