Você lembra de Nicodemos? Provavelmente sim. Nicodemos era um fariseu, membro do Sinédrio Judaico, um homem de influência, que tinha relacionamento com as autoridades Romanas e com a elite de Israel, tanto a classe política quanto a religiosa.
Eu creio que Nicodemos era um homem sincero, que amava a Deus e que se alegrava em poder servi-lo. Mas ele era um homem da religião. Havia aprendido a religião de Israel como todos os outros hebreus, através do repasse das tradições e dos costumes. A fé que ele construíra era uma fé dessignificada, calcada em ordenanças que haviam se tornado esvaziadas de valores e conteúdos, baseada em ritos ocos, em cerimoniais cansativos, em esmolas, jejuns e orações meramente litúrgicas, que procediam muito mais da razão do que do coração.
Gosto de pensar que, envolto por tudo isso, Nicodemos sentiu-se exaurido. Cansou daquele modelo. Não suportava mais viver na dimensão dos mitos e da aparência. Tudo lhe fazia mal, provocava enjôos, uma aflição de alma. Era uma grande contradição saber que a salvação vinha dos judeus e, ainda assim, não conhecer o Deus da salvação. Era como entregar oferta de barro, que não possuía significado, num altar de bronze, que não se projetava como culto e celebração para a vida.
Aí veio Jesus... É provável que, assim como os outros fariseus, Nicodemos tenha esbarrado com o Galileu pelas ruelas de Jerusalém, tendo-o seguido até o Templo. Não sei quantas vezes ouviu-o pregar, ou mesmo se ele teve a oportunidade de ver algum milagre. O que me parece é que as verdades e valores de Jesus impactaram-no tanto que ele decidiu ir conversar com o Senhor, talvez por ter chegado ao ápice de sua crise existencial-religiosa.
Naquela noite, após revirar-se de um lado para o outro da cama, Nicodemos levantou-se disposto a procurar o Profeta de Nazaré. Foi um encontro as escondidas, de tal forma a preservar sua identidade. Imagino Jesus saindo ao encontro do “mestre” da Lei. A conversa começou cheia de salamaleques, mas Jesus foi direto ao que interessava: “Nicodemos – importa-vos nascer de novo!”. Punk! O fariseu atormentado, confuso, desencontrado de si mesmo, de sua própria alma, não conseguia fazer abstrações: “como pode um homem velho voltar ao útero materno e nascer de novo?”.
Pobre Nicodemos... Quando mais a conversa avançava, mais perdido ele se sentia. As verdades do Reino, os conteúdos do Evangelho da Graça, a maneira de Jesus, seu olhar, sua voz, tudo mexia com ele. E o Senhor prosseguiu: “como pode você ser mestre em Israel e não entender o que estou lhe dizendo?”. No fundo, era como se dissesse: “Nicodemos, amigo, largue tudo isto, largue esta religião de morte! Isso para nada aproveita a não ser para entorpecer a consciência e endurecer o coração”.
Por fim, a conversa terminou. Jesus retirou-se e foi dormir em paz; Nicodemos saiu atormentado. O dia raiou e ele não conseguiu “pregar os olhos”. “Como assim, nascer de novo?”. Aquilo era demais... Não compreendera que nascer da água significava a necessidade do arrependimento que produz a ressignificação da consciência em fé. Muito menos que o nascer do Espírito poderia transformar a “letra morta”, antes impressa nos rolos sagrados, em experimentação de vida, pois os princípios agora poderiam ser “tatuados” no coração.
Se você for pesquisar o nome Nicodemos, verá que ele é citado 3 vezes nas Escrituras, todas no Evangelho de João. A primeira, no capítulo 3, registra este encontro que descrevi acima. A segunda é quando Jesus cura um cego de nascença, no capítulo 7, e os fariseus, alvoroçados, tentam descredenciá-lo diante do povo. Na terceira vez, em João 19, ele surge no sepultamento de Jesus. Sim, Nicodemos, junto com José de Arimatéia, fez o sepultamento do Senhor.
Daí por diante não se ouve falar mais de Nicodemos. Não sei qual foi o seu destino... Contudo, creio que algo muito poderoso aconteceu em seu íntimo e que, após aquela noite, ele nunca mais foi o mesmo. Digo isto porque penso ser impossível alguém se encontrar com Jesus, expor as dores da alma, os medos da vida, os dramas do ser, sem que isso produza profunda mudança existencial.
Nestes dias que vivemos tenho me sentido como Nicodemos, impregnado pelos ritos, dogmas e preceitos de uma religião que se tornou propositora da morte, e não promotora da vida. Sim amigos, o cristianismo adoeceu mortalmente, há muito tempo, e talvez nem eu nem você tenhamos percebido porque nós estamos doentes também... Tornamos-nos parte de um “sistema” que mata as emoções, banaliza o sagrado, corrói a consciência e petrifica o coração.
Nossas práticas não instigam ninguém a querer seguir a Jesus. Nossa mensagem é uma exumação de letras mortas, ao invés de ser a encarnação do espírito e da vida. Vivemos uma religião de consumo, indo ao templo no “dia sagrado”para purgar do ser os pecados que foram cometidos nos outros seis dias. Nossas reuniões são cansativas, desprovidas de graça e poder, nossa ética é circunstancial, nosso serviço opcional e nossa adoração restrita aos 20 minutos de “louvor gospel” no “culto”.
Digo com tristeza que me amoldei a tudo isto... A coisa enraizou-se no ser. Mesmo crendo de forma diferente, a vida neste modus operandis acabou condicionando-me a mente e o coração. Mudar dá trabalho, leva tempo, e requer sacrifícios. Melhor seria ficar com o “modelito” antigo, com todas as “mungangas” que fazem a “massa do bolo” crescer. Sei que as “velhas técnicas” são capazes de, em pouco tempo, proporcionar-me ser pastor de uma “igreja” cheia, mas de gente vazia.
Comecei a entender melhor o drama de Nicodemos, pois, como ele, tenho também perdido o sono... O problema é que eu já passei do ponto onde seria possível suportar o “vinho velho”, cogitar ser tudo isto um mal necessário, ou tentar me acostumar a estas realidades dizendo: “é assim mesmo. Não dá para mudar as regras a essa altura do campeonato”. Não dá! Como Nicodemos, estou impactado pelas verdades e valores do Reino de Deus, louco para largar tudo e viver o Evangelho, conforme Jesus. Estou como Paulo, considerando tudo como esterco para alcançar aquilo para o qual fui conquistado. Já abri mão de algumas coisas, mas estou convencido de que precisarei ir ainda muito mais longe.
Se você se sente como eu, quero lhe dizer que não há outro caminho a ser seguido que não seja o de se lançar de forma ousada na busca de encarnar tudo aquilo que Jesus encarnou. E creia: isso é possível, pois “o justo viverá por sua fé”. Mesmo que você, por vezes, se sinta como Nicodemos, em contradição e angústia de alma, continue perseverando, pois sem disciplina e ousadia não será possível construir o novo em Deus.
Quanto a mim, não tenho mais como auto-flagelar a minha consciência para fazer de contas que estou vivendo o Evangelho. Não tenho mais como alimentar este modelo de religião de consumo! Estou cansado da teologia moral de causa e efeito, de uma hermenêutica bíblica desconectada do tempo, da razão, e até mesmo da fé. Cansei dos “pacotes enlatados”, dos métodos engessados, das regras de sucesso eclesiástico, dos manuais de crescimento de Igreja, das visões enfatuadas, do proselitismo, da concorrência eclesiástica, da instituição, cansei de tudo... Graças a Deus!
Sola Gratia!
Carlos Moreira
Perseverança
Há 6 dias
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