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30 julho 2018

Jesus Encenado por um “Traveco”? E por que não?





A polêmica da peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, chegou aqui em Pernambuco, mais especificamente, no “Festival de Inverno” da charmosa cidade de Garanhuns.

O imbróglio começou antes mesmo da apresentação, com ordem e contra-ordem da Justiça, ora proibindo, ora liberando o evento. O último ato da prosopopeia se deu na sexta-feira - 27/07, quando o desembargador Roberto da Silva Maia, a pedido da Ordem dos Pastores Evangélicos de Garanhuns, proibiu a exibição da peça. Na sequência, todavia, o presidente do Tribunal de Justiça de Pernambuco, desembargador Cândido Saraiva, manteve a decisão inicial de que ela poderia ser apresentada ao público.

O espetáculo, que originalmente versa sobre um monólogo escrito pela dramaturga transexual escocesa Jo Clifford, passou a ser executado no Brasil pela transexual Renata de Carvalho. Nele Jesus é um travesti e, logo na primeira cena, de salto alto e vestido, se apresenta afirmando: "Vocês não imaginavam me encontrar aqui, vocês imaginavam me encontrar na igreja, mas na igreja não posso entrar". Confesso: já me apaixonei!

O roteiro interpretativo, numa releitura contemporânea, segue visitando parábolas e ensinamentos de Jesus onde é possível, por exemplo, ouvir: “Nunca disse: cuidado com os homossexuais, transexuais e gays. Eu nunca disse isso, eu disse: cuidado com os autoindulgentes e os hipócritas, cuidado com aqueles que se imaginam virtuosos e proferem julgamento, aqueles que condenam os outros e se consideram bons. Seus lábios são cheios de bondade, mas seus corações estão plenos de ódio”. Vibrei! Na esmagadora maioria das igrejas cristãs deste país algo tão sólido, que aponta inexoravelmente para a perspectiva do Evangelho, é dito com tanta determinação e verdade.

Bem, diante de tudo o que aconteceu, a primeira questão que desejo pontuar, apenas para lembrar-nos, é que o Estado Brasileiro é laico, ou seja, não arbitra nada no âmbito religioso, dando liberdade às pessoas para expressarem suas crenças como bem entenderem. Assim, a censura, que ocorreu em várias cidades do país, jamais poderia ser uma questão da justiça, uma vez que houve clara tendenciosidade religiosa para que a sanção fosse estabelecida. Afirmar que a peça “expõe símbolos religiosos ao ridículo” é, no mínimo, uma forçação de barra sem precedentes.

A segunda questão que me chamou à atenção é que o problema real está no fato da atriz que interpreta o papel de Jesus ser transexual. Creia: permitir algo desta monta é blasfêmia contra “Deus” e contra o cristianismo. Ora, Jesus já foi interpretado por incontáveis atores, em peças, filmes, musicais e, salvo em casos raros, como no polêmico “A Última Tentação de Cristo”, de Nikos Kazantzakis, com interpretação irretocável de Wilem Dafoe, não se viu qualquer tipo de manifestação ou censura. Aliás, aqui mesmo em Pernambuco, numa jogada marqueteira sensacional, a “Paixão de Cristo”, maior espetáculo ao ar livre do mundo, realizado na Semana Santa em Nova Jerusalém, faz todo ano um rodízio de Jesus com atores globais que provocam o maior frisson entre a mulherada. Lembro, num desses anos, que o Fábio Assunção, que não carrega reputação que corresponda aos critérios éticos e morais da “Santa Igreja”, interpretou o papel com a desenvoltura que lhe é peculiar. Amigos que foram ao espetáculo, para ver esse Jesus de olhos azuis e cabelos loiros sedosos, relataram o constrangimento de assistir cenas dos Evangelhos tendo ao fundo assobios, histeria e gritos de “gostoso”. Não lembro, todavia, de nenhum movimento de religiosos ou do poder público para proibir nada. Também, pudera, ali rola muita, muita grana mesmo...

Finalmente, nesta simples reflexão, lhe faço uma pergunta provocativa: “Você acha mesmo que Jesus está preocupado com o fato de uma transexual realizar uma peça teatral com uma releitura de suas falas, ainda que possamos enquadrar, aqui e ali, imprecisões quanto ao que está dito nos Evangelhos?”. Ora, meu amigo, Jesus entrou na casa de Simão, o fariseu, homem dito de Deus, dado aos ascetismos de Israel, ao cerimonialismo religioso vazio, as liturgias de purgação de pecados ineficazes, a reverência a forma e o culto a mecanicidade de um tipo de fé que nada pode produzir ao coração e a consciência, e ali teve seus pés lavados por uma mulher da vida, puta mesmo, que não se conteve e em uma explosão de amor, com suas próprias lágrimas, ungiu-lhe diante de todos. O religioso, escandalizado por saber que tipo de pecado ela carregava, fez sua censura pública e com gestos expunha sua reprovação. Jesus, todavia, repreendeu-lhe, e asseverando sobre a verdadeira espiritualidade, aplicou-lhe uma lição que serve, também, para mim e para você. Você acha que esse Jesus, que não é nutella, mas raiz, ia ficar chocadinho e ruborizado porque uma atriz trans está fazendo uma encenação dele numa apresentação cultural? Jesus não é travesti, ele sabe de si, ele é Deus, mas você tem que defender ele porque, quem sabe, o seu "Jesus" acabe entrando em crise com tudo isso. Ah meu Pai! Sabe de nada, inocente...

Concluo, portanto, pedindo que o estado, a justiça, e os religiosos deixem a Peça em cartaz, pois o próprio Jesus afirmou “Quem não é contra mim, é por mim”. Jesus "Traveco"? Gente do céu, é apenas uma peça, vocês não conseguem abstrair nada, tudo tem que ser a ferro e fogo. Num tempo onde os profetas estão mortos, Deus pode levantar transexuais para nos jogar na cara valores que temos negligenciado, como a tolerância, o respeito e o amor. Se a igreja pensa que tem o “copyright” de Jesus, que é dona da “marca”, que só ela pode falar em nome dele, é bom repensar seus conceitos, pois, tempos atrás, houve uma moçada lá em Israel que pensava a mesma coisa, e o final deles, como sabemos, foi trágico...

Carlos Moreira




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