Fazer o quê? Não tenho como negar que há em mim essa disposição incansável de continuar, de persistir e resistir até ao improvável. Desenvolvi uma atração irresistível para tentar fazer o que outros não puderam, ir por onde muitos fracassaram, perseguir o que poucos conseguiram.
Fazer o quê? Eu gosto de frio, de chuva, de
dias cinzentos, de engarrafamentos, de observar gente que vai e vem. Gosto da
cidade grande, de cafeterias, livrarias, de boas conversas e mentes abertas. Gosto
da solidão, da ocasião, de manteiga no pão e de por os pés na aspereza do chão.
Fazer o quê? Eu gosto de correr riscos, me
expor e, por vezes, até de me contrapor. Mudo de faixa, mudo de lado, mudo de
opinião, mudo às vezes fico, emudeço e deixo a mente vagar, transporto-me para
outro lugar, fecho-me em copas, desapareço, saio de mim mesmo, deixo a casa e o
ser vazios.
Fazer o quê? Tenho uma atração curiosa por
coisas velhas. Admiro o retrô e possuo uma estranha saudade do passado. Não é
nostalgia, mas gosto pelo antigo. Já senti muitas vezes que não faço parte
deste tempo, deste mundo, desta geração. É pura contradição trabalhar com
tecnologia e apreciar o rudimentar, o artesanal, o personalizado.
Fazer o quê? Já conheci muita gente,
participei de muitas “rodas”, mas ainda não consegui fazer um amigo. Amizade é
coisa difícil de conceituar, difícil de manter e mais difícil ainda de achar.
Possuo, sim, muitos conhecidos, mas amigo, amigo mesmo, ainda não; quem sabe,
um dia...
Fazer o quê? Eu sou exagerado, passional e
ansioso. Tudo o que faço é extremado, é 8 ou 80. Não existe em mim
meios-termos, nunca fui comedido, equilibrado, contido ou centrado. Sou excesso
e paixão, sou intenso e emoção. A vida, essa sim, me pôs rédeas, o fracasso me
impôs a razão e as quedas a ponderação. Mas não se engane, no fundo, ainda sou
“bicho solto”.
Fazer o quê? Eu me enfado com a mesmice,
não gosto de serializações, de rotinas, de agendas, de programas, de coisas
ensaiadas, organizadas. Gosto do inusitado, da aventura, do improviso, do
momento. Tenho ânsia em criar, sou movido por espasmos, impulsos violentos,
saio do asfalto, ando por atalhos, crio meus próprios mapas, faço rotas onde não há estradas.
Fazer o quê? Apesar de toda a timidez,
impensável para quem me aprecia, fato para quem me conhece, gosto de me expressar,
sou ser polêmico, de opiniões firmes, convicções quais estacas fincadas no ser,
por vezes, inamovíveis. Dificilmente ando de forma cartesiana, estou sempre na
contra-mão, no contra-fluxo, do lado “errado” da rua, do lado de fora, onde há
pouca ou nenhuma companhia.
Fazer o quê? Tornei-me alguém sem grandes ambições ou muitas pretensões. Como imaginava, na meia idade já conquistei
tudo o que desejava meu coração. Um dia, é fato, eu quis dominar o mundo
inteiro, mas isso quase me custou perder a minha alma. Ainda tenho uns poucos
sonhos, que valem a pena ser sonhados, mas é coisa “rala”, simples e até fácil de
se alcançar.
Fazer o quê? Se ainda há tanto por fazer, e
muito mais ainda para ser, não me venha falar em aposentadoria, ócio, feriado
ou dia de Santo. Dá licença que eu vou passar, abra espaço que preciso seguir, estou
grávido de esperanças e devo em breve parir singularidades. Sim, não espere por
mim para o jantar, pois vou por esta estrada imprecisa, nesta ânsia de
transcender, de ir além do que sou, tornar-me algo que ainda está por se fazer.
E fazer o quê, se meu vício é viver?
Carlos Moreira
Carlos Moreira